Barry Lyndon, o Kubrick esquecido
Este texto foi publicado originalmente na Take Cinema Magazine dia 12 de agosto de 2016 com o título Barry Lyndon e pode ser lido na íntegra aqui.
Stanley Kubrick é um realizador com grande sentido visual e de composição. Depois do seu projecto pessoal para um filme sobre Napoleão, ao qual dedicou uma aturada e obsessiva pesquisa, ter caído por terra, e inspirado num livro sobre arte do século XVIII, Kubrick vira-se para as pinturas de Thomas Gainsborough, Joshua Reynolds e William Hogarth para filmar, com o devido contexto histórico, Barry Lyndon, uma adaptação do romance picaresco de William Makepeace Thackeray, The Luck of Barry Lyndon. Recriando a riqueza de cores e a sumptuosidade estética da época inspira-se, também, no chiaroscuro dos quadros à luz das velas de Joseph Wright of Derby para filmar as célebres cenas de interior apenas à luz das velas, sem iluminação artificial. Desta forma a arte tem, não só uma importância fulcral na estética visual do filme, como na sua narrativa pois a posse de peças de arte era vista como um símbolo de estatuto, resultando numa despesa monumental na escalada social de Barry Lyndon alimentada pela sua ambição aristocrática. Apesar dos tableaux aparentemente superficiais e distantes criados por Kubrick, a sua abordagem recria com fidelidade o riquíssimo universo que retrata, tendo inclusivamente rodado apenas em locais naturais, dando o devido enquadramento para as preocupações temáticas da narrativa.
Visionário e inovador Kubrick sempre esteve na crista da onda no que respeita a utilizar a tecnologia de ponta ao serviço da sua visão. Em 2001 – Odisseia no Espaço tinha elevado a fasquia no que respeita aos efeitos especiais e com o Shinning seria um pioneiro na utilização dasteadycam. Em Barry Lyndon revolucionou a utilização de lentes na captura de luz natural utilizando lentes especiais que a companhia alemã Zeiss tinha desenvolvido para a NASA para fotografia de satélite. Com uma velocidade do obturador 100% mais rápida que a mais rápida das lentes para cinema teve de adaptar câmaras especialmente para albergar as lentes de dimensões incompatíveis com os tamanhos de câmara existentes. Os desafios técnicos eram, ainda assim, enormes pois a baixíssima profundidade de campo das lentes obrigavam a um aturado ensaio por parte dos actores que tinham de ser minimalistas nos seus movimentos para garantir que a imagem permanecia focada. Felizmente, e apesar de todas estas dificuldades, o resultado final é espantoso e merece a pena ser contemplado.
Barry Lyndon é uma parábola tragico-cómica que narra a ascensão e queda social de um aventureiro irlandês no século XVIII com ambições de pertencer à aristocracia. Com a narração na terceira pessoa que acompanha o filme, Kubrick permite que a história de Lyndon tenha peso e que o narrador, isento e desapaixonado, comente de forma cínica e irónica os acontecimentos. Através da utilização da técnica de zoom, caída em desuso actualmente, Kubrick abre lentamente os enquadramentos sublinhando a qualidade pictórica das cenas e reduzindo muitas vezes as personagens a elementos insignificantes enquadrados na vastidão dos cenários naturais que os rodeiam reforçando a vaidade e superficialidade deste período da história. Esta era uma época onde o homem procurava controlar a sua própria natureza através de uma elaborada etiqueta e Kubrick, ajudado também pelas selecções clássicas que compõem a banda sonora, envolve-nos numa ilusão de cultura e civilidade que oculta o lado mais feio e desprezível do Homem.
A estrutura narrativa é constituída por duas partes distintas mas que se espelham: a ascensão social de Barry Lyndon, seguida da sua queda. Em 1960 Kubrick escrevera “O romance perfeito para fazer um livro é, penso eu, não um romance de acção mas, pelo contrário, o romance que se baseia na vida interior das suas personagens. Dará ao adaptador um testemunho completo, como se fosse o que a personagem está a pensar ou sentir num determinado momento da história“. EmBarry Lyndon adapta as aventuras e desventuras do irlandês sem grandes explicações ou elaborados diálogos, deixando o espectador fazer a sua leitura sobre os acontecimentos encenados. Ainda nas palavras de Kubrick este elaborava: “Penso que é essencial, se um homem for bom, que este saiba também em que é mau e o demonstre, ou se for forte, que decida quais são os momentos na história em que é fraco e o mostre. E acho que nunca se deve tentar explicar o modo como se tornou assim ou porque razão fez o que fez.” Curiosamente, no epílogo do filme Kubrick acaba por recuperar a imagem do seu personagem principal ilibando-o por este ser apenas, no fundo, humano.
Barry Lyndon baralhou público e crítica na data da sua estreia, apesar dos quatro Oscares que arrebatou, e permaneceu sempre na sombra dos filmes mais aclamados do seu realizador. Agora, a reposição nos cinemas no seu quadragésimo aniversário, levou a uma reavaliação que o tem aclamado como uma das obras maiores do seu autor. Para mim é ainda cedo para o comparar à restante filmografia de Kubrick pois nunca tinha sentido o impulso de o ver e só agora tive essa experiência mas, mais razões não houvessem para louvar este tipo de reposições, bastaria a de este que se assina ter tido finalmente a oportunidade de assistir a um acontecimento cinematográfico imperdível.
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