Evil Dead II: o nascimento de um herói
Este texto foi publicado originalmente na Take Cinema Magazine dia 14 de dezembro de 2016 com o título [Segunda Dose] A Morte Chega de Madrugada (Evil Dead II) (1987) e pode ser lido na íntegra aqui.
A Noite dos Mortos-Vivos é o enganador título português para a estreia nas longas metragens em 1981 de Sam Raimi, The Evil Dead. Isto porque é o mesmo título nacional do clássico de George A. Romero de 1968 que definiu o conceito de zombies tal como o conhecemos atualmente, Nigh of the Living Dead. O filme de Raimi é ainda hoje em dia um dos filmes mais assustadores do espólio do género de terror gore dos anos 80, apesar do passar dos anos e da óbvia artificialidade dos seus efeitos especiais, resultado dos parcos meios financeiros. O seu tom opressivo e claustrofóbico, aliado à sua coragem na dispensa de horror gráfico, continuam extremamente eficientes, mesmo para o mais empedernido fã do género.
Cinco amigos universitários viajam até uma cabana remota no bosque para umas férias calmas. Ao descobrirem um estranho livro e uma fita de áudio com a leitura de encantamentos em voz alta, libertam inadvertidamente demónios que os possuem um-a-um. Além da sua estética lo-fi, resultado natural da modesta produção, e do seu gore levado ao extremo, com transformações grotescas, desmembramentos, sangue e outros fluídos a serem generosamente dispensados em frente às câmaras, uma das mais valias de The Evil Dead é o estilo visual do seu realizador estreante nas longas-metragens. Através de métodos bastante artesanais Sam Raimi conseguiu imprimir um inovador estilo visual ao seu filme. O movimento da câmara em alta velocidade, planando mesmo acima do chão, representando o ponto-de-vista de uma qualquer maléfica entidade é, ainda hoje em dia, uma imagem de marca deste filme.
As suas invenções eram de tal ordem que acabavam batizadas pela equipa de rodagem, como a “vas-o-cam“, que consistia numa câmara montada num suporte que deslizava ao longo de plataformas de madeira barradas de vaselina, para criar uma sensação fluída de movimento, ou a “shaky cam“, alternativa barata à Steadicam, onde a câmara era montada num pedaço de madeira que depois dois operadores, cada um do seu lado, levavam em corrida pelo bosque. Outro dos truques revelados por Bruce Campbell, que sofreu horrores nas mãos de Raimi, mas ainda viria a sofrer muito mais nas filmagens da sequela, é a cena final em que este é perseguido por uma câmara montada num tripé numa mota conduzida através do bosque, por dentro da cabana e, por fim, na direção do actor, que terá partido algumas costelas para conseguir a cena.
Se há filme que merece ser considerado de culto é The Evil Dead. É o resultado de cineastas entusiasmados e entusiasmantes, e a sua fama é altamente merecida. Assustador, mal comportado e barato, é o filme perfeito para ver num sábado à noite entre amigos, de preferência numa cópia velha em VHS, no seu formato original de 4:3. É um daqueles filmes que têm o poder de nos intrigar, e de nos fazer questionar como terão feito aquilo, enquanto olhamos em pânico por entre os dedos das mãos.
Só me lembro de outro filme do género mais capaz no despertar do cineasta que há em nós, bem como do gosto pelo ato de fazer cinema. Chama-se Evil Dead II, e em Portugal ficou conhecido como A Morte Chega De Madrugada. Em 1987 Sam Raimi decide voltar à cabana remota no meio do bosque para uma sequela. Tendo novamente dificuldade em financiar o projeto, reza a história que terá sido Stephen King, confesso fã do primeiro filme, enquanto rodava Potência Máxima com Dino De Laurentiis, a convencer o veterano produtor a financiar Evil Dead II através da sua produtora De Laurentiis Entertainment Group. Na realidade Dino estava proibido de lançar filmes sem classificação etária através da sua companhia, daí a criação da entidade fictícia que se vê no genérico do filme, Rosebud.
Há várias confusões normalmente associadas com Evil Dead II. A começar pelo seu título, onde se omite o artigo “The” do primeiro filme, e o dois é um numeral romano. Isto porque a maior parte dos materiais promocionais, incluindo cartazes e edições em vídeo, anunciam o filme com um numeral cardinal e com um subtítulo que não está presente no genérico do filme: Evil Dead 2: Dead By Dawn. Daí o título em português A Morte Chega de Madrugada. Outra das causas da confusão é a natureza da relação de Evil Dead II com o original The Evil Dead. É uma sequela, ou um remake do primeiro filme? Isto porque os primeiros minutos da sua propulsiva narrativa refazem de uma forma muito sintética a história do primeiro filme. Para os mais incautos este arranque é alucinante, imprimindo ao filme um ritmo frenético e despachando uma série inacreditável de acontecimentos em poucos minutos, mas a realidade é que este início existe a pedido dos produtores pois tinham medo que grande parte do público pudesse não ter visto o filme original. Quando Raimi se viu impossibilitado de usar excertos do filme anterior para resumir a história por razões legais, resolveu refazê-lo de forma condensada, reduzindo inclusivamente as cinco pessoas do elenco para apenas duas, Ash e a sua namorada Linda. Houve sempre a intenção de Evil Dead II ser uma sequela que retoma a narrativa a partir do fim do primeiro, sensivelmente ao minuto sete. Para quem não conheça o filme anterior, acaba por ser um filme contido, com uma vitalidade e energia invejáveis nos minutos iniciais.
Evil Dead II é uma reação às polémicas do seu antecessor, mantendo os seus níveis de violência gráfica e acrescentando uma vertente cómica slapstick, já sugerida em algumas das suas cenas, assumindo definitivamente a herança dos Três Estarolas do seu autor. É o filme que definiu o tom da trilogia, levado ao extremo cinco anos mais tarde no tomo final da saga, O Exército das Trevas, menos horrifico e mais cómico, e consolidando Bruce Campbell como o relutante, mas sarcástico herói desta saga, através da sua inesquecível e icónica imagem de camisa rasgada, peitorais à mostra, empunhando uma motosserra como apêndice no lugar da mão direita, e uma caçadeira de canos serrados na mão esquerda. Mas nem só de imagem se faz o mito de Bruce Campbell. Este ator lendário das produções de baixo-orçamento carrega quase todo o filme às costas, especialmente na primeira metade, que funciona quase como uma macabra comédia da era do mudo onde Ash se vê obrigado a lutar contra a sua própria mão possuída que o atinge violentamente, inclusivamente com pratos na cabeça, numa luta hilariante que é, na realidade, uma extraordinária interpretação física de Campbell que, tendo dispensado duplos, executa todas as manobras que vemos no ecrã, culminando no vitorioso e sangrento desmembramento da própria mão com a referida motosserra. Raimi define aqui praticamente todo um género, a que chamou “Spook-a-blast“, onde o objetivo é produzir no espectador uma reação que mistura o horror com a gargalhada, cada susto um misto confuso de choque e repulsa com elementos de cariz cómico. Refinando o estilo visual do filme anterior Raimi recria a infame cena do bosque, omitindo as conotações sexuais, mas incrementando a violência gráfica, e oferece uma panóplia de ângulos e movimentos de câmara impossíveis, bem como soluções criativas que, não só sublinham a progressiva perda da sanidade de Ash, como proporcionam inesquecíveis momentos, tais como a dança do corpo desmembrado de Linda ao luar, o escárnio coletivo de Ash por objetos inanimados, como livros, um candeeiro, e um busto de um veado empalhado, ou a imagem de Ash que sai do espelho para o esganar.
Quando o resto do elenco se junta ao herói principal a frágil narrativa construída por Sam Raimi, e pelo seu amigo de longa data Scott Spiegel, é secundária face ao tom e às situações brilhantemente executadas pela equipa de efeitos especiais lideradas por MarkShoestrom, incluindo os especialistas em prostéticos Howard Berger, Robert Kurtzman e Greg Nicotero. Nicotero, que tinha trabalhado dois anos antes em O Dia dos Mortos, o terceiro filme da saga zombie de Romero, sob a tutela do venerado veterano Tom Savini, é hoje em dia mais conhecido pelo seu trabalho na série televisiva The Walking Dead, não só como realizador de alguns episódios importantes, como pelos efeitos especiais da responsabilidade da sua companhia KNB EFX Group, fundada em 1988 precisamente com Berger e Kurtzman. Uma das suas criações marcantes em Evil Dead II é a “zombificada” Henrietta, um fato prostético que permitiu que esta personagem, uma versão possuída da idosa Henrietta, fosse interpretada com convicção por Ted Raimi, o irmão mais novo de Sam que, tal como Campbell, sofreu fisicamente nas filmagens em prol do melhor resultado possível.
Embora The Evil Dead tenha o seu merecido culto, Evil Dead II é um filme superior, não só na qualidade de execução, como no que respeita à pura criatividade. É um filme contagiante e de um ritmo frenético que inspira cineastas a perseguirem os seus sonhos, da mesma forma que os Velvet Underground inspiraram músicos a formarem as suas bandas. Quando se invoca a saga são o seu tom e estética que são lembrados e mesmo a atual série televisiva Ash vs. Evil Dead, que é uma continuação direta de O Exército das Trevas recupera o tom e a estética deste capítulo da saga apontando ao difícil equilíbrio entre o horror e a comédia desta obra-prima.
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