A primeira tentação de Scorcese
Este texto foi publicado originalmente na Take Cinema Magazine dia 27 de Janeiro de 2017 com o título [Patinho Feio] A Última Tentação de Cristo (1988) e pode ser lido na íntegra aqui.
Olhando para a filmografia de Martin Scorcese este parece ter vivido muitas vidas. Fruto da nova vaga americana dos anos setenta é o realizador de títulos icónicos como Os Cavaleiros do Asfalto, Taxi Driver, O Touro Enraivecido, Tudo Bons Rapazes ou o filme que lhe valeu finalmente o Óscar The Departed – Entre Inimigos. Apesar de recordado em primeira instância pelos filmes sobre gangsters violentos a sua filmografia revela uma inusitada variedade oferecendo, além dos títulos que mencionei, musicais como New York, New York, comédias como O Rei da Comédia ou Nova Iorque Fora de Horas, dramas épicos de reconstituição de época como A Idade da Inocência ou Gangs de Nova Iorque, biografias como O Aviador ou O Lobo de Wall Street, e até filmes comerciais de género como O Cabo do Medo ou Shutter Island. Ao atentar nestes títulos, e Scorcese é responsável por outros tantos de igual interesse que não listei, o fio temático que parece recorrer na sua filmografia com alguma frequência é o da exploração de conceitos católicos como a culpa, a fé ou a redenção. Filho de imigrantes italianos em Nova Iorque Scorcese cresceu num ambiente de devoção católica e além de esta ter reflexos temáticos nos seus filmes, deu origem anteriormente a alguns títulos onde o realizador explora de forma direta a sua relação com a religião. O primeiro desses títulos foi a polémica adaptação em 1988 de A Última Tentação de Cristo.
A Última Tentação de Cristo é um romance de 1955 escrito por Nikos Kazantzakis que retrata a vida de Jesus Cristo e a sua luta com várias formas de tentação, incluindo medo, dúvida, luxúria, relutância e, em última instância, o desejo de ser apenas um homem comum e não o messias com a missão de salvar a humanidade. Ao retratar Jesus como um homem em conflito consigo próprio, que fabricava cruzes para os romanos, que questionava o seu papel de salvador e que, perante o sofrimento na cruz, é tentado a viver uma vida comum, casando e tendo filhos, o livro, e mais tarde o filme, viram-se envolvidos em polémica, nomeadamente provocada por cristãos ofendidos com os desvios da história aos Evangelhos. Em 1972 Barbara Hershey ofereceu uma cópia do livro a Scorcese no set de filmagens de Uma Mulher de Rua. O realizador, que queria filmar uma versão da história da vida de Jesus desde a infância, garantiu os direitos para a adaptação do livro no final da década de setenta, oferecendo-o a Paul Schrader para o adaptar. Schrader tinha escrito o argumento de Taxi Driver e O Touro Enraivecido para Scorcese e a produção estava planeada avançar com chancela da Paramount em 1983, no que seria o filme do realizador após O Rei da Comédia. Mas a produtora recuou perante o aumento do orçamento e dos protestos que recebeu de grupos religiosos.
Em 1986 a Universal Studios interessou-se pelo projeto e avançou para a produção com um orçamento reduzido e um plano de filmagens apertado. Jay Cocks, em parceria com Martin Scorcese, fizeram uma revisão não creditada no argumento de Schrader e em Outubro de 1987 têm início as atribuladas filmagens. Scorcese diria mais tarde que “trabalharam num estado de emergência”, improvisando frequentemente no local, sem qualquer tipo de planeamento. Isto deu origem a uma estética minimalista para o filme. O elenco é de luxo com Barbara Hershey, que tinha oferecido o livro a Scorcese, a interpretar Maria Madalena, Harry Dean Stanton como o apóstolo Paulo, David Bowie num pequeno papel como Pôncio Pilatos, Harvey Keitel num retrato alternativo de Judas e com o destaque maior a ir inevitavelmente para Willem Dafoe, que oferece um retrato honesto e humano de um Jesus Cristo em conflito interno. É impossível falar de A Última Tentação de Cristo sem falar da polémica que o envolveu quando estreou em 1988, desde protestos às portas dos cinemas por pessoas que nem sequer tinham visto o filme, passando por cadeias de cinemas que se recusaram a exibi-lo, o que terá contribuído para os seus magros resultados de bilheteira, até aos desprezíveis atentados em França onde fundamentalistas católicos pegaram fogo a algumas salas de cinema provocando um morto e vários feridos. A verdade é que a religião é um tema sensível e tocar em dogmas religiosos faz vir ao de cima a intolerância do cocktail perigoso que é o fundamentalismo misturado com a fé cega.
Mas mais interessante do que falar das suas polémicas é olhar novamente para os seus méritos enquanto obra cinematográfica. E com a estreia de Silêncio torna-se impossível não contextualizar estes dois filmes num díptico da exploração do seu autor sobre a natureza da Fé, não como instrumento de verdade, mas como forma de levantar questões. Ao retirar de Jesus, tal como interpretado por Willem Dafoe, o peso da santidade que lhe foi atribuída pela igreja a que deu origem, o que encontramos é uma personagem confrontada com a sua própria humanidade, logo com todos os seus defeitos, fraquezas e desejos. Este retrato humanista de Jesus coloca-o num constante estado de dúvida perante o seu suposto papel. Ele não detém todas as respostas nem vê claramente o seu caminho. É através da constante reflexão e questionamento que vai trilhando o seu caminho. É na sua luta interna entra a luz e a escuridão, ao confrontar os seus próprios impulsos, que vai tomando consciência da sua missão. Ainda assim aceita o sacrifício da crucificação, mas todo o sofrimento na cruz parece mais um abandono que um ato divino. Valerá a pena a humanidade ser salva, ou merecerá antes que se lamente por ela? De que forma se honra a vontade de Deus? Amando os outros ou forçando-os pela lei da espada? Ou será constituindo uma família, simplesmente amando a mulher e os filhos? A Última Tentação de Cristo levanta estas dúvidas e, para grande desconforto de muita gente, sugere que Jesus as possa ter colocado também.
Martin Scorcese mais uma vez serve na perfeição o material. Não se encontra aqui o seu habitual estilo visual frenético nem a montagem a mil à hora. Apesar do parco orçamento e do estilo frugal a recriação de época é verosímil e realista. Sente-se a lama e a terra debaixo das unhas e o guarda-roupa é espartano e vivido. No que respeita à banda sonora Scorcese recorreu a Peter Gabriel no pico da sua popularidade. Este reuniu um conjunto de músicos do Médio Oriente, África, Europa e Sul da Ásia que acabaram a contribuir pelo aumentar do interesse global pela world music. Entre as colaborações encontram-se nomes como Nusrat Fateh Ali Khan, com vocalizações qawwali, Youssou N’Dour, com vocalizações senegalesas ou Shenkar com contribuições de violino. A música composta foi então trabalhada e expandida já depois da estreia do filme e reunida no álbum de Peter Gabriel Passion, mais tarde reeditado com o título Passion: Music for The Last Temptation of Christ.
Nove anos mais tarde Scorcese voltaria a lidar diretamente com a religião ao filmar a biografia do Dalai Lama em Kundun. Mas claramente sentia o seu diálogo com a religião católica ainda incompleto e esta semana chegou finalmente às salas de cinema em Portugal Silêncio, o seu mais recente filme onde volta a explorar questões de fé, sacrifício e missão.
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