Segundo Take

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Na sombra de uns bons rapazes

Este texto faz parte da rúbrica Fight Club da Take Cinema Magazine onde foi publicado originalmente no dia 23 de Janeiro de 2017 com o título [Fight Club] Tudo Bons Rapazes vs. Casino [Ronda 2]. Pode ser lido na íntegra aqui, bem como o artigo complementar sobre Tudo Bons Rapazes, escrito por José Carlos Maltez aqui.

Quando Casino estreou em 1995, foi largamente ignorado pela Academia, tendo sido nomeado apenas na categoria de Melhor Atriz Secundária para a interpretação de Sharon Stone. Ainda hoje, na hora de falar da filmografia do seu realizador, é um título pouco lembrado. Provavelmente pela sua proximidade com Tudo Bons Rapazes: cinco anos apenas separam as duas produções tematicamente muito semelhantes, repetindo o autor do livro de base, Nicholas Pileggi, que também co-escreveu o argumento com Scorcese em ambos os filmes, e repetindo os seus dois atores principais, Robert de Niro e Joe Pesci.

Casino será sempre avaliado neste contexto e, para ser honesto, é um filme menos imediato e menos vistoso que o seu irmão mais velho, mas não merece a sombra que Tudo Bons Rapazes lhe lança. Scorcese oferece-nos mais uma viagem épica e fascinante aos meandros da vida criminosa, neste caso focando-se no controlo de um casino em Las Vegas pela máfia de Chicago através da gestão na sombra por um dos seus cúmplices. Com a colaboração de Pileggi o realizador ficciona acontecimentos reais transformando Frank “Lefty” Rosenthal em Sam “Ace” Rothstein, interpretado por Robert de Niro, e Anthony Spilotro em Nicky Santoro, interpretado por Joe Pesci. Sharon Stone encarna Ginger McKenna, a mulher de Sam, baseada em Geri McGee.

Scorcese utiliza as suas técnicas habituais para um primeiro ato eletrizante envolvendo-nos na mecânica do funcionamento do esquema mafioso através de narrações em off, longos planos sequência em movimento, edição ritmada e diálogos em fogo-rápido. Quando o ritmo abranda, e a narrativa propriamente dita arranca, fomos totalmente seduzidos pela forma narrativa com que o estilo de vida nos é apresentado onde a violência e o crime coabitam naturalmente com a vida doméstica e onde as personagens definem um conjunto próprio de valores para justificar os seus atos. A história é intrincada e obriga a alguma atenção se não quisermos perder nenhum pormenor dos acontecimentos. Mas o que está no cerne de Casino, como em muitas obras de Scorcese, é a dinâmica das personagens e a natureza das suas interações. A qualidade das interpretações é fulcral para o sucesso das cenas onde o subtexto é tão importante como aquilo que é dito e as fidelidades estão sempre em jogo.

Tudo Bons Rapazes seduzia-nos forçando-nos a identificar com Henry Hill, interpretado por Ray Liotta, para nos fazer testemunhar o seu processo de autodestruição e a sua derradeira traição. Casino é iminentemente mais trágico pois todas as suas personagens carregam consigo o fardo do seu destino, sendo incapazes de traçar rumos alternativos às suas próprias vidas. Não há um elemento externo ou traidor e o desfecho de cada personagem foi traçado pelos seus próprios defeitos e escolhas.

Apesar de Joe Pesci voltar a interpretar uma personagem violenta e imprevisível, as interpretações são genericamente mais subtis e ricas, oferecendo cenas de grande dramatismo pela força dos seus atores. Uma prova disso é o retrato da relação entre Sam e Ginger, duas personagens ambiciosas, mas com diferentes agendas que embarcam numa relação autodestrutiva assente nos frutos que cada um espera colher para proveito próprio ao invés de uma real paixão ou mesmo respeito. Robert De Niro tem uma das últimas grandes interpretações e Sharon Stone impressiona no papel de uma mulher confiante e independente, mas que mantém uma relação de dependência com um amante que funciona como rastilho do seu casamento de conveniência com Sam.

Casino é também, em última instância, um conto moral onde as personagens encontram consequências violentas para os seus atos ou simplesmente são castigadas com a temida banalidade, pior que a prisão para quem tinha sonhado com o topo de mundo, demonstrando mais uma vez que, por muito glamorosa que possa parecer, a vida de crime acaba sempre em justa retribuição. Assim, combina com Tudo Bons Rapazes num díptico perfeito da exploração de Martin Scorcese sobre a falência do sonho americano e, mesmo que as subtilezas daquele se percam por comparação com a maior popularidade deste, merece ser (re)descoberto e apreciado como uma das obras maiores da filmografia do seu autor.

 

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