A Família Addams
A Família Addams foi criada pelo autor de banda desenhada Charles Addams em 1938. Originalmente protagonistas de tiras cómicas publicadas na New Yorker, representavam uma inversão satírica do ideal de família americana do século XX: um clã aristocrático rico e estranho que se deleita com o macabro e parece inconsciente ou despreocupado que as outras pessoas os achem bizarros ou assustadores. Pouco desenvolvidos e sem nomes próprios, ganharam personalidade em 1964 com a adaptação à televisão pela ABC. Assim, o casal central Morticia e Gomez, as crianças Wednesday e Pugsley, o Tio Fester, a avó Addams, o mordomo Lurch e o Coisa, uma mão desincorporada, bem como um rol de memoráveis personagens recorrentes, consolidaram a imagem desta família de estética gótica, celebrizando também a contagiante música do genérico inicial.
Na década de noventa, Barry Sonnenfeld realizou um par de filmes que voltaram a popularizar a família, e pelo meio A Família Addams regressou à televisão numa animação de 1992 que durou duas temporadas. Chegados a 1998, levou não com uma mas com duas machadadas finais. The New Addams Family, uma série televisiva live action de uma temporada com uns estonteantes 65 episódios, e A Reunião da Família Addams, uma sequela na linha do Sozinho em Casa 3, sem nenhum do talento original. O quê? Nunca viram nenhum destes títulos. Deixem lá. Pertencem a uma imensa maioria. O que nos traz a 2019. Apontado ao Halloween, e aos mais novos, estreou dia 31 de Outubro nas salas de cinema portuguesas uma nova iteracção de A Família Addams, desta vez uma animação por computador. Curiosamente, a história da génese deste filme passa por Tim Burton, anunciado em 2010 como o realizador de uma versão em stop-motion. Infelizmente, apesar do potencial da ideia, dado o historial do realizador com esta técnica de animação, acabámos com um projecto mais convencional com argumento de Matt Lieberman e realização de Conrad Vernon e Greg Tiernan.
Gomez e Morticia são perseguidos, juntamente com o restante clã Addams, durante a sua própria cerimónia de casamento por uma multidão enfurecida pela sua natureza macabra. Na sequência da fuga, a família Addams encontra o seu lar “perfeito” num asilo abandonado em Nova Jersey, numa colina assombrada por um espírito mal-humorado. Atropelam acidentalmente Lurch, um paciente mental fugido, e imediatamente recrutam-no como mordomo. Treze anos depois, Gomez prepara Pugsley para o iminente Mazurka do Sabre, um ritual de passagem para todos os membros da família, e Morticia debate-se com o desejo de Wednesday experimentar o mundo fora da mansão.
Goste-se muito ou pouco do ressurgimento de A Família Addams nos anos noventa, é inegável o sucesso do elenco em voltar a dar vida a estas personagens, garantindo para uma nova geração a identificação das mesmas com as suas imagens e interpretação. Esse era o primeiro desafio desta animação: fazer esquecer a encarnação anterior, para tal angariando nomes de luxo no elenco: Oscar Isaac, como Gomez, Charlize Theron, como Morticia, Chloë Grace Moretz, como Wdenesday, Finn Wolfhard, como Pugsley, Nick Kroll, como Fester, ou Bette Midler, como a avó Addams — por alguma razão, tal como aconteceu há quase trinta anos, recuperou-se também o rap como música para ilustrar as desventuras da família, recrutando-se como manobra publicitária Snoop Dogg para encarnar o primo Itt, uma personagem cujo diálogo é imperceptível.
Se o trabalho de voz dos actores é adequado, e o desenho das personagens é aceitável, a narrativa é derivativa, parecendo recuperar os temas de assimilação e normalização de A Família Addams 2, e inspirando-se na estética do (incontornável) Tim Burton, evocando memórias de Eduardo, Mãos de Tesoura. O que funcionará para os mais novos, mas dificilmente impressionará os pais mais exigentes. Perante isto, pedia-se um maior compromisso com o humor ou com o nível de estranheza da família, para contrastar com o pesadelo de subúrbio apresentado como a “norma”. No fim, apesar de algumas boas, mas esparsas, piadas, nem uma coisa nem outra, e a mensagem de aceitação deixa um travo sacarino de dejá vù. A sensação que fica é de um elenco e uma oportunidade desperdiçada. Uma oportunidade para, através da celebração da diferença e da aceitação, sim, mas desafiando os mais novos, de lhes oferecer uma experiência menos segura.
A Família Addams não desiludirá os mais novos que já saibam ao que vão, mas dificilmente fará as delícias de quem não tenha o mínimo de familiaridade com o clã Addams. É um filme inofensivo que celebra a diferença e promove a aceitação. É pena que, com tão distintiva colecção de personagens ao seu dispor, não se distinga de tantos outros que fazem o mesmo.
O episódio do podcast Segundo Take dedicado a A Família Addams pode ser ouvido aqui.