As arcas perdidas de Steven Spielberg
Nesta edição de Universos Paralelos, um programa da autoria de António Araújo (Segundo Take), José Carlos Maltez (A Janela Encantada) e Tomás Agostinho (Imaginauta), que podem encontrar em http://www.segundotake.com/podcast/2019/2/24/episodio173, acompanhamos Indiana Jones em inúmeras aventuras pelo mundo fora, desta vez, com a ajuda do Tiago Laranjo.
“O regresso da grande aventura.” Esta foi a promessa feita em antecipação da estreia em 1981 do novo filme dos criadores de Tubarão e A Guerra das Estrelas. Em 1973, tal como viria a acontecer com a história de fantasia espacial que gerou um império, George Lucas procurava recuperar o espírito dos filmes em série exibidos nas décadas de trinta e quarenta. Desta feita, esboçou o professor arqueólogo aventureiro Indiana Smith e, em conjunto com Philip Kaufman, delineou uma aventura envolvendo uma demanda pela bíblica Arca da Aliança. Depois de esta ideia ter ficado em banho-maria, e de Lucas ter passado alguns anos numa galáxia muito distante, Steven Spielberg confessou ao amigo que sonhava realizar um filme do agente secreto James Bond, ao que este lhe respondeu ter algo muito melhor. Spielberg gostou da ideia, mas não do apelido do herói — ambos concordaram que Jones soava melhor em conjunto com Indiana, o nome do malamute-do-alasca que também tinha inspirado Lucas na criação de Chewbacca, o peludo companheiro do herói da saga espacial Han Solo.
Os Salteadores da Arca Perdida, como foi baptizada a primeira aventura de Indiana Jones, foi desenvolvida em paralelo com a continuação das aventuras de Luke Skywalker e companhia realizada em 1980 por Irvin Kershner, O Império Contra-Ataca, e acabou por beneficiar de uma série de sinergias que se estabeleceram entre os dois projectos com supervisão executiva de George Lucas. O jovem argumentista Lawrence Kasdan foi responsável pela escrita dos dois filmes e, no caso da película de Spielberg, aproveitou uma transcrição de cem páginas das conversas que os três criativos tiveram durante cinco dias para o primeiro rascunho do guião. Destas sessões saíram muitas ideias que se tornariam em cenas de antologia — como Indiana Jones a ser perseguido por uma pedra gigante — e outras que derramaram para o posterior Indiana Jones e o Templo Perdido. John Williams, que expandiu a sua ópera espacial com a icónica marcha imperial, criou para o arqueólogo um dos temas mais populares da história recente do cinema com um tema imediatamente reconhecível e iminentemente trauteável. Mas o elemento que consolidou Indiana Jones de forma perene na memória cinéfila e cultural foi a escolha do actor para encarnar o lacónico e destemido herói — felizmente, a primeira escolha de Spielberg, Tom Selleck, teve de recusar o convite pois estava comprometido com uma série televisiva na altura, abrindo portas para a escolha óbvia (em retrospectiva) de dar o chapéu e o chicote do herói a Harrison Ford, o adorável pirata da saga espacial de Lucas.
Os desígnios de Spielberg para a caracterização da personagem — queria Indiana Jones como um alcoólico com um lado negro — foram suavizadas pela visão de Lucas para o herói, um professor académico com uma costela aventureira e, ao quinto rascunho, Kasdan tinha construído uma narrativa virtualmente irrepreensível centrada na demanda de Indiana Jones em oposição a um grupo de nazis no encalço da arca onde se acredita estarem guardadas as tábuas dos dez mandamentos. Desde o primeiro momento — um prólogo muito bondiano situado no Peru que parece encerrar uma aventura de um capítulo anterior das aventuras do arqueólogo — percebemos estar na companhia de um herói “à antiga”. Confiante, competente, mas vítima de vilões implacáveis que lhe goram os melhores planos, como é o caso de René Belloq. A partir daqui, Indiana Jones viaja — de avião, a cavalo, agarrado à parte inferior de um camião, de barco e até pendurado no exterior de um submarino — numa aventura exótica entre os EUA, o Nepal, o Egipto e uma ilha perdida algures no mar Egeu. Na companhia de aliados como Marion, interpretada por Karen Allen — uma forte personagem feminina e excelente contraponto para o herói — ou Sallah, uma composição de John Rhys-Davies, Indiana Jones supera inúmeros desafios em cenas antológicas que, desta vez, cumpriram a promessa dos cartazes e trouxeram mesmo a aventura de volta, dando-lhe um novo nome.
“Se a aventura tem um nome… deve ser Indiana Jones.” Com esta frase promocional o herói do chicote estava de regresso ao grande ecrã em Indiana Jones e o Templo Perdido, novamente com Steven Spielberg atrás das câmaras. Com o tempo, este tornou-se num capítulo impopular, podemos mesmo dizer "a ovelha-negra da série", e o próprio realizador foi-se distanciado da sua fama, atirando as culpas do negrume do filme para o divórcio de George Lucas — acontecimento que terá afectado a disposição do produtor na altura de desenvolver mais uma aventura do professor arqueólogo. Para o argumento, Lucas contou com os amigos pessoais Willard Huyck e Gloria Katz, com quem tinha escrito em 1973 o seu sucesso de bilheteira American Graffiti: Nova Geração. O casal também tinha ajudado no polimento não creditado de alguns dos diálogos do argumento de A Guerra das Estrelas e viria a hipotecar praticamente a carreira em 1986 com a infame produção de Lucas realizada por Huyck, Howard e o Destino do Mundo, um filme inacreditável que ficará para sempre na história como a primeira longa metragem a adaptar ao cinema uma personagem da Marvel. Os argumentistas não só descartaram o elemento nazi da Arca Perdida, como Templo Perdido é, tecnicamente, uma prequela com a acção a ocorrer antes dos eventos daquele filme. Tenho a noção que a minha relação com este filme pode ser informada pelo facto de ter sido aqui que conheci o Indiana Jones no grande ecrã quando ainda não tinha completado oito anos, mas o que muitos consideram uma fraqueza é, no entanto, na minha opinião, uma decisão brilhante soltando a narrativa de qualquer amarra de continuidade, sendo ao mesmo tempo perfeitamente fiel ao espírito dos filmes em série em que Lucas e Spielberg se haviam inspirado.
É certo que Kate Capshaw, no papel de Willie, não tem as mesmas qualidades de Karen Allen. Onde antes tínhamos uma mulher cheia de recursos e personalidade, temos agora uma donzela em apuros que grita amiúde e a plenos pulmões — o próprio argumento parece ter consciência do facto e endereça-o num diálogo humorístico. De resto tudo funciona em Templo Perdido, mesmo a presença de Ke Huy Quan como Minorca. Esta opção de emparelhar Indiana Jones com uma criança, nitidamente apontada ao segmento mais jovem, incrivelmente funciona dada a química e o humor das interações entre os dois. A narrativa leva-nos de Hong-Kong a uma remota vila indiana através de uma icástica sequência de fuga onde os nossos heróis passam de um avião descontrolado para um bote de borracha em processo de enchimento em plena queda livre.
Estamos em paragens muito diferentes nesta aventura que leva o arqueólogo a infiltrar-se num culto thuggee procurando libertar crianças feitas escravas e, pelo caminho, quem sabe, encontrar as míticas “Pedras de Sankara”, artefactos baseados no símbolo do deus hindu Shiva. Com uma ficção tecida a partir de factos históricos e crenças hindus — talvez menos conhecidos no ocidente, logo menos apreciados em comparação com os vilões da vida real em que os nazis se tornaram com a Segunda Guerra Mundial — Indiana Jones e o Templo Perdido permite-nos explorar elementos originais e refrescantes que, polémicas sobre a justeza do retrato de outros povos à parte, nos dão a conhecer culturas e costumes que não estamos habituados a ver retratados no cinema.
Na mira das críticas e da infâmia que se abateu sobre o filme estão a cena em que Willie e Minorca são presenteados com um festim de alimentos exóticos — como escaravelhos, serpentes recheadas de enguias vivas, sopas de olhos ou miolos de macaco servidos no seu recipiente original — e a sequência central do filme, um ritual macabro em que o vilão Mola Ram tira o coração a um sacrifício humano com as próprias mãos. A violência deste momento veio redefinir o panorama das classificações etárias nos EUA, contribuindo para uma alteração cultural significativa. Em conjunto com a intensidade de Gremlins - O Pequeno Monstro, filme de 1984 realizado por Joe Dante, também produzido por Steven Spielberg, Indiana Jones e o Templo Perdido obrigou a Motion Picture Association of America a criar a nova classificação etária PG-13, garantindo que crianças com menos de treze anos não pudessem entrar na sala de cinema. Não menos importante para esta decisão foi a inclusão de uma sequência em que Indiana Jones é enfeitiçado por Mola Ram e se torna, também ele, num vilão. Se para um adulto é fácil digerir este dispositivo narrativo, para uma criança ver o seu herói virar-se para o lado do mal é positivamente assustador. E é aqui que volta a ser relevante a presença de Minorca. Um herói não é ninguém sem os seus aliados e é o seu diminuto amigo que salva Indiana Jones no virar para o terceiro acto. Esta sequência final é de tirar o fôlego e contém duas — repito, duas — cenas icónicas: a nunca ultrapassada perseguição no sistema de carris da mina subterrânea, com trocas de carros, pessoas penduradas sobre lava e saltos entre linhas inacabadas, e a cena da ponte de corda onde Indiana Jones, beneficiando do seu conhecimento de cingalês, transmite exclusivamente a Minorca a pretensão de sair da encurralada situação em que se encontram cortando a ponte com a catana que empunha.
“O homem do chapéu está de volta. E desta vez, traz o papá.” Este era o chamariz dos cartazes de avanço para a anunciada derradeira aventura de Indiana Jones na reta final da década de oitenta — segundo o título original, muito embora a tradução portuguesa tenha sido presciente e trocado a palavra “última” por “grande” — em Indiana Jones e a Grande Cruzada, realizado em 1989, como sempre, por Steven Spielberg. Quando Lucas “vendeu” originalmente a ideia ao realizador, imaginou sempre uma trilogia de filmes. Muito embora Spielberg estivesse relutante em relação a tal comprometimento, decidiu cumprir a promessa feita ao amigo, utilizando também o terceiro capítulo como um “pedido de desculpas” pelo filme do meio. É sabido que haveria, muitos anos mais tarde, um infame e atribulado quarto capítulo, mas até à data, o desenvolvimento de a Grande Cruzada foi o mais acidentado da trilogia original.
Decididos a recuperar o espírito do primeiro filme, Lucas e Spielberg iniciaram o desenvolvimento da história que teve iterações tão distintas e excêntricas como: um primeiro guião assinado por Diane Thomas para um filme passado numa mansão assombrada; um esboço de Lucas — com o título Indiana Jones e o Rei Macaco (esperem, isto é mesmo verdade) — onde o arqueólogo luta com um fantasma na Escócia e encontra a fonte da juventude em África; uma variação deste último, escrito por Chris Columbus, onde a fonte da juventude é trocada pelo jardim dos pêssegos imortais (não, a sério!) e que introduziu elementos como um pigmeu de duzentos anos, um nazi com um braço mecânico, um ritual de ressurreição pela mão do Rei Macaco, uma tribo canibal e um pirata. Spielberg, pouco satisfeito com estes desenvolvimentos, sugeriu a introdução de um elemento que habitualmente faz parte das suas preocupações temáticas: Henry Jones, Sr., o pai de Indiana. Entretanto, o colaborador do realizador Menno Meyjes foi contratado para desenvolver o argumento onde esta novidade ecoava a procura de Indiana pelo Santo Graal, um dispositivo narrativo pensado originalmente para o prólogo do filme, agora promovido ao elemento central da história. Foi Jeffrey Boam quem acabou por consolidar os conceitos do colega anterior no que veio a ser o argumento filmado, não sem antes um trabalho não creditado de revisão final de Tom Stoppard, maioritariamente no polimento dos diálogos.
O resultado é um filme que se tornou um favorito dos fãs. Tendo vivido pessoalmente em adolescente a antecipação de o ver no cinema — ainda hoje tenho a adaptação editada pela Europa-América, lançada semanas antes do filme, a banda sonora em vinil e a coleção de cromos completa — também fui apanhado pela ambição e escala desta aventura, bem como pelas espectaculares cenas de acção em que Indiana Jones se vê envolvido na companhia do casmurro e pouco impressionável pai. Porém, apesar de ser um excelente filme, a sua fama de ser um regresso à forma do original é uma falácia que encobre o facto de este ser, na realidade, uma cópia da fórmula do mesmo. Onde a Arca Perdida é irrepetível e o Templo Perdido original, a Grande Cruzada é familiar e conservador. Estamos de volta ao imaginário nazi e aos artefactos religiosos cristãos, seguindo o preceito do original. A mais valia é mesmo a introdução de Sean Connery como pai do herói. A sua relação recalibra de forma inesperada a imagem que temos do estóico arqueólogo. Mas há, com a cena inicial, e com o investimento pessoal do herói na demanda, uma vontade desnecessária de canonização da personagem. Nunca consegui entender que se tenha feito isso também às custas da integridade de personagens como Sallah ou Marcus Brody, o professoral Denholm Elliott, transformados em apontamentos cómicos que desrespeitam as suas personalidades originais. Onde antes o humor era um contraponto bem medido ao negrume, aqui parece o cumprir de um caderno de encargos inorgânico às personagens e à narrativa.
Ainda assim, o último capítulo desta saga produzido na década de oitenta parecia encapsular e encerrar de forma totalmente satisfatória uma trilogia quase perfeita que certamente continua a ter ressonância ainda hoje. O cavalgar em direcção ao sol, bem como o título original, prometiam o fechar de um ciclo e o cristalizar do mais puro espírito de aventura. Indiana Jones era a recuperação de um herói do passado que seria relembrado por muitos anos no futuro. É verdade que, entretanto, houve um quarto capítulo pouco satisfatório e que há outro prometido para 2020, mas, se quisermos, podemos ignorá-los e apontar para Indiana Jones como um dos heróis definitivos que só podiam ter saído da década da nossa juventude.
António Araújo, Junho 2018