Nós
Depois de um aclamado percurso humorístico na televisão, Jordan Peele surpreendeu meio-mundo em 2017 com a sua longa-metragem de estreia atrás das câmaras, Foge, filme com o qual veio arrecadar o Óscar de Melhor Argumento Original, além de sucesso público e crítico. Esse reconhecimento foi de certa forma manchado pelo branqueamento, não temático, curiosamente — o filme era descaradamente um tratado sobre a clivagem racial nos EUA —, mas sobre o género em que se inseria. Claramente um filme de terror, assim que se viu no centro das atenções, foi reclassificado como thriller psicológico — etiqueta mais aceitável para o mainstream — chegando ao ridículo de ser nomeado para os Globos de Ouro como Comédia ou Musical. Desde então, Peele tem-se vindo a posicionar como o «Rod Serling para uma nova geração», por assim dizer, e anunciou para Abril de 2019 o renascimento da série The Twilight Zone, conhecida entre nós como A Quinta Dimensão, um clássico antológico de narrativas de ficção, terror e mistério, em que o próprio servirá de apresentador. Entretanto, estreou nos cinemas Nós, Us no original, obra vincadamente de terror, dissipando quaisquer dúvidas sobre o género em que Peele se sente em casa.
É muito difícil falar de Nós porque a sua narrativa é construída na base por um mistério traumatizante que é a peça-chave para o desenrolar da trama, mas vou fazer o meu melhor para não revelar nada que não seja da premissa com que o filme foi publicitado. Em 1986, uma jovem Adelaide vai à praia durante as férias com os pais em Santa Cruz. Afastando-se sozinha, entra numa sala de espelhos de uma casa de diversões, onde tem uma experiência traumática. Mais tarde, reunida com os pais, revela-se incapaz de falar sobre a sua experiência. Já adulta, Adelaide, interpretada por Lupita Nyong’o, volta à casa de praia com o marido Gabe, Winston Duke, e os filhos Zora e Jason, os jovens actores Shahadi Wright Joseph e Evan Alex, respectivamente. Nessa noite, deparam-se com quatro pessoas vestidas em fatos-de-macaco vermelhos à porta da sua casa. Gabe tenta confrontar os intrusos, porém estes atacam-no e invadem a habitação, revelando-se duplos idênticos da família.
Inspirado pelo conceito de duplos do episódio Mirror Image, exibido originalmente em 1960 na série A Quinta Dimensão, Jordan Peele constrói uma narrativa desconcertante em que uma família se vê confrontada com uma ameaça inusitada: uma cópia exacta de cada um dos seus elementos, como que uma versão pouco refinada, ressentida e violenta de cada componente da clássica estrutura familiar. Depois de passarmos o tempo devido a conhecer a saudável dinâmica familiar, incluindo o contraste com a disfunção dos Tyler, a família amiga com que se encontram na praia, Nós torna-se um filme de cerco angustiante e de persistente tensão, com suficientes doses de violência para que, desta vez, não corra o risco de ser chamado de outra coisa que não «filme de terror».
Se as intenções de género são mais óbvias, as preocupações temáticas do seu autor são mais ambíguas. Colocando uma família negra no centro de um filme de terror, caso raro na história do género, Peele esbate os limites tradicionais da representação racial no cinema, ainda assim cometendo a proeza de não transformar Nós num filme sobre raça — tal como Foge o era obviamente. Não obstante uma «explicação» pouco satisfatória — e até escusada — na recta final da narrativa, o papel da duplicidade é ambíguo e sujeito a interpretações variadas. Será o duplo uma versão sombria do próprio ser, dos seus sentimentos reprimidos e suprimidos, dos seus traumas do passado enterrados e esquecidos? Seremos nós próprios os nossos piores inimigos?
O título original Us é conciso e ambíguo, encerrando múltiplas possibilidades. Para além da leitura de «nós», se lermos Us como «US» (United States), percebemos que Peele está a falar também do que significa ser americano — o que se torna claro perante a resposta de Red, a dupla de Adelaide, quando confrontada com a pergunta sobre quem são os invasores: «somos americanos». Neste ponto, Nós aproxima-se inesperadamente do título charneira da ficção científica Metropolis, de Fritz Lang, oferecendo uma representação dual e desigual da sociedade dividida claramente entre «nós» e «eles», os «privilegiados» e os «carentes», os que vivem à luz do sol e os que penam na sombra da sua pouca sorte.
Jordan Peele tem um controlo irrepreensível da narrativa, ainda que esta possa não ser totalmente clara para o espectador, polvilhando-a de simetrias e elementos premonitórios. Um exemplo é o momento de leveza em que Zora é ignorada pela família quando partilha que o estado controla a população através de flúor na água: «ah, é verdade, ninguém quer saber do fim do mundo». Estes momentos descontraídos, proporcionados em grande parte por Winston Duke, oferecem verosimilhança ao retrato familiar, conquistando-nos e envolvendo-nos nos seus destinos. Surpreendentemente, o humor também está presente nos momentos mais violentos, servindo como bem-vindas válvulas de escape para a tensão acumulada. Um destes episódios é protagonizado por Elizabeth Moss, como Kitty Tyler, a mãos com mais um dos recorrentes erros de uma assistente virtual inteligente, neste caso num momento totalmente inoportuno e de consequências mortais.
Todo o elenco principal tem trabalho a dobrar, no entanto a estrela que brilha mais alto é Lupita Nyong’o, extraordinária tanto como a vulnerável Adelaide como encarnando a ameaça de Red. É ela quem está no centro da narrativa e quem encerra a chave para o mistério. No confronto final, interpreta as duas facções em conflito num momento em que o balé toma o palco, apontando a criação criativa e a beleza artística como forças de mudança e rebelião. Outro elemento decisivo para a eficácia e impacto do filme é a banda sonora de Michael Abels, apenas a sua segunda para longas-metragens — a primeira foi, precisamente, Foge — recheada de composições que ampliam a tensão, bem como um memorável tema principal constituído à base de coros sinistros, invocando a memória da música de Jerry Goldsmith para O Génio do Mal.
No final, talvez Jordan Peele tenha tentado fazer malabarismos com bolas a mais, recheando Nósde elementos temáticos ambiciosos que não parecem conviver harmoniosamente, porém esta é uma experiência aterradora nos seus melhores momentos, polvilhada de imagética icónica e marcante, que ultrapassa as suas limitações narrativas para voltar a confirmar o seu autor como uma voz a seguir com atenção no que respeita à produção norte-americana actual de terror sem complexos, no entanto aproveitando o meio para o incutir de preocupações temáticas de consciência social.
O episódio do podcast Segundo Take dedicado a Nós pode ser ouvido aqui.