John Wick 3 – Implacável
Depois do fenómeno cultural da trilogia Matrix, Keanu Reeves teve uma longa travessia no deserto no que respeita a popularidade, alternando filmes de menor perfil com projectos que ficaram aquém das expectativas nas bilheteiras e falharam no recuperar do actor como protagonista de fitas de acção e artes marciais. Inesperadamente, em 2014, numa reunião com os duplos daquela trilogia de sucesso — agora promovidos à cadeira da realização — Chad Stahelski e David Leitch, Keanu reencontrou em John Wick o carisma e o reconhecimento do público ao interpretar o protagonista titular num violento filme de acção catapultado por uma premissa emocional que rendilha uma mitologia secreta de assassinos internacionais com regras e códigos de conduta muito próprios. O actor voltou a encontrar aqui um papel à medida das suas limitadas capacidades de interpretação, focando-se nas suas maiores virtudes, nomeadamente a sua total dedicação e destreza nas cenas de grande exigência física, desta feita na construção de uma lendária personagem, elevada a mito pelo relato das histórias dos seus feitos.
Apesar da pobreza da escrita de Derek Kolstad, o sucesso foi suficiente para o regresso, três anos mais tarde, em John Wick 2, agora realizado apenas por Stahelski — no mesmo ano, Leitch tentava uma variante no feminino da mesma fórmula com Charlize Theron em Atomic Blonde – Agente Especial. John Wick 2 duplica a aposta no funcionamento interno da organização de criminosos, deixando para trás a tênue âncora emocional do filme original. Ironicamente, esta sequela eleva John Wick a super-herói intocável, incluindo fatos à prova de bala, ao mesmo tempo que lhe reduz a carga mitológica, pelo menos aos olhos dos antagonistas que não o temem como a sua fama faria prever. Cada vez mais conto-de-fadas fantasioso, frustra, à imagem do original, pela ausência de qualquer reflexão moral ou pessoal sobre o bailado de violência encenado, incluindo inúmeros tiros de pistola à queima-roupa na cara de capangas “carne-para-canhão”, num filme claramente cada vez mais apaixonado com a ideia de retribuição física com recurso a armas de fogo.
John Wick 3 – Implacável retoma no exacto ponto em que o capítulo anterior tinha terminado, com a personagem titular em processo de fuga do omnipresente círculo de assassinos disseminados por Nova Iorque depois de ter sido excomungado da organização para a qual prestava os seus serviços, com a agravante de ver a sua cabeça colocada a prémio por uns apetecíveis 14 milhões de dólares. Neste arranque, há um palpável escalar de tensão que culmina em cenas de hiper-violência que prometem a transcendência do banal filme de acção para os domínios do horror corporal. O ridículo namora com o sublime num primeiro acto demarcado por uma perseguição motorizada em que o herói segue em fuga montado num cavalo! — quando mais tarde, voltamos às motos, invocando a memória do policial de Ridley Scott, Chuva Negra — a ausência dos equídeos não favorece a cena, por comparação com a anterior.
Pelo meio de revelações — Angelica Huston é convidada para oferecer credibilidade a uma reviravolta irrelevante que, no entanto, dá as asas necessárias à narrativa (que, convém dizer, sempre foi um elemento secundário nos filmes desta saga) — e novidades — Hale Berry dá uma perna, colorindo uma sequência que reintroduz o motivo canino numa piscadela de olho ao MacGuffin que deu o pontapé de saída às embrulhadas do protagonista —, Stahelski e a agora equipa de argumentistas não esquecem o legado de Matrix, o filme que definiu a carreira de Keanu Reeves do qual tinham convocado Laurence Fishburne e ao qual pedem emprestado o seu elemento menos apelativo: armas, muitas armas.
Apesar do brilhantismo da execução das cenas de acção, sempre que as armas de fogo são colocadas em primeiro plano, o nível de interesse depende muito da relação que o espectador tem com aquelas, bem como do seu uso intensivo à queima-roupa na cara e na cabeça dos vilões, por muito anónimos e “cartoonescos” que sejam. Ultrapassando a sensibilidade pornográfica na representação de violência armada, sobra um sentido estético apurado e uma fotografia de cores saturadas que tira o melhor proveito dos seus cenários interiores luxuosos e dos exóticos locais onde a história decide levar John Wick numa missão de reflexão sobre as consequências das suas acções que, entretanto, parece ficar amputada e esquecida algures.
Uma das maiores surpresas de John Wick 3 – Implacável é a recuperação de Mark Dacascos, protagonista de fitas de acção série B dos saudosos tempos da cassete VHS, aqui como o carismático (e bem-humorado) vilão que força a narrativa a dispensar o boçal festival de tiros para uma sequência final de confronto através de excelentes coreografias de artes-marciais num cenário reminiscente da sala de espelhos de John Wick 2 — já ela reminiscente da memória de Bruce Lee em O Dragão Ataca —, desta feita com resultados muito mais satisfatórios.
Depois da sua longa travessia no deserto — trocadilho completamente intencional —, Keanu Reeves tornou-se inesperadamente no herói de acção para os tempos modernos: uma espécie de versão revista e refinada do John Matrix de Arnold Schwarzenegger em Comando, um dos pontos altos deste género na década que viu nascer uma fornada inimitável de implacáveis heróis de barba rija. Será discutível a relevância deste tipo de cinema na actualidade? Talvez. Será John Wick uma personagem anacrónica e desligado do clima cultural que vivemos? Definitivamente. No entanto, nem todos os filmes têm de ter consciência social, cultural ou política, podendo por vezes ser apenas entretenimento e escapismo: tudo vai depender do prazer que se deriva de ver (muitas) pessoas a levar tiros na cara.