Ad Astra
Num futuro próximo, o Sistema Solar é atingido por misteriosos picos de energia, ameaçando toda a vida humana. Depois de sobreviver a um incidente causado por um desses picos, o major Roy McBride, Brad Pitt, filho do famoso astronauta H. Clifford McBride, Tommy Lee Jones, é informado pelo SpaceCom, o Comando Espacial dos EUA, que os picos têm origem no “Projeto Lima” — um projecto sob a liderança de Clifford criado para pesquisar vida inteligente a partir dos limites do Sistema Solar do qual não se ouviram notícias durante dezesseis anos depois de chegar a Netuno. Informado que Clifford pode ainda estar vivo, Roy aceita uma missão de viajar para Marte para tentar estabelecer uma comunicação com ele, acompanhado pelo antigo colega do pai, o coronel Pruitt, Donald Sutherland.
É curioso que James Gray tenha filmado a sua versão de O Coração Das Trevas, de Joseph Conrad, logo após a sua aventura na selva, A Cidade Perdida de Z. Em Ad Astra, o Roy lança-se numa viagem espacial à procura do pai, aclamado como um herói depois de se ter perdido, literal e metaforicamente, algures nas proximidades de Neptuno, a bordo de uma estação espacial onde as suas experiências com anti-matéria, na busca obsessiva por inteligência alienígena, colocaram a existência da Terra em perigo. A viagem de McBride ecoa a viagem rio acima, não só de Charles Marlowe, na novela de Conrad, como também do assombrado Martin Sheen, como o Capitão Benjamin Willard, na incontornável adaptação de Francis Ford Coppola, Apocalypse Now, sendo a hostilidade da selva substituída aqui pela hostilidade indiferente do espaço.
Gray afirma que este funciona quase como um reverso de A Cidade Perdida de Z. Onde no filme anterior a motivação do filho era superar a desgraça em que o pai tinha deixado o nome de família, em Ad Astra Roy vive na sombra do legado do pai, lidando ao mesmo tempo com o vazio que este deixou ao abandonar a família para embarcar numa missão só de ida. O estoicismo e fortitude de Roy no arranque da narrativa não passam de fachadas que mal escondem apatia, desligamento, introversão e outros indicadores de depressão. Enquanto a imagem pública do pai é colocada num pedestal, a consequência privada dos seus actos traduzem-se numa incapacidade de Roy se ligar a um nível emocional. Na sua viagem por cenários de hostil e indiferente beleza, obra da fotografia arrebatadora de Hoyte Van Hoytema — que já havia filmado Interstellar para Christopher Nolan —, quanto mais se alarga o âmbito da narrativa pelo Sistema Solar fora, mais o filme olha para dentro e se torna específico, explorando o micro-cosmos interpessoal da relação quebrada entre um pai e um filho. E de todas as demais relações quebradas em consequência. A dor de Roy é tanto de perda, como de arrependimento por todos os actos infligidos a terceiros ao seguir os passos do pai.
Lidando com o elefante no meio da sala, dado o contraponto metafórico entre o espaço exterior e o espaço interior, o voz-off de Roy aparece como uma opção discutível de Gray que torna literal o texto do filme, esvaziando-o de ambiguidades. Ombreando com as cenas de avaliação psicológica da personagem — reminescente de cenas semelhantes em Blade Runner 2049 —, criativo dispositivo narrativo para um vislumbre do estado de espírito de Roy, e interessante apontamento temático que coloca uma inteligência artificial encarregue desta tarefa, a narração pela voz de Pitt acaba por parecer supérflua e redundante, não por um qualquer desejo não correspondido de ambiguidade do espectador, mas pela sua existência evidenciar uma certa falta de confiança no mesmo. Por outro lado, Gray não parece estar interessado em plantar incertezas no público e, apesar das “acusações” de ser um classicista — o realizador contrapõe que os críticos confundem forma com o conteúdo —, esta é uma opção formal contra-corrente e corajosa. Não funciona, mas acaba por se destacar pelo seu surpreendente radicalismo. Igualmente óbvia, porém muito mais eficiente, é a progressiva alteridade conforme nos afastamos da Terra. Na Lua, vislumbram-se ainda as piores tendências do comportamento humano, tal como a comercialização dos terminais de transportes ou as mesquinhas disputas territoriais e materiais. No entanto, na estranheza de Marte, a sanidade passa por tentar emular o que de melhor temos no nosso único lar. As salas de conforto — a fazer lembrar a icónica sequência em que Sol Roth desiste de viver em À Beira do Fim, de Richard Fleischer — aparecem assim como um vislumbre surreal e premonitório da quebra de contacto com o familiar. Marte como a última fronteira que separa a civilização do desconhecido.
Com início em 2001: Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, passando por Solaris, de Andrei Tarkovsky — sem esquecer também a leitura de Steven Soderbergh —, até Interstellar, deChristopher Nolan, a ficção científica, onde tomo a liberdade de incluir o recente O Primeiro Homem na Lua, de Damian Chazelle, tem-se prestado a utilizar o vácuo do espaço exterior como expressão física dos mistérios das mais insondáveis convulsões humanas interiores. Ad Astra é mais uma adição nesta galeria de títulos de qualidade variável, mas de ambições desmedidas. Pelo caminho, encontramos reflexões sobre religião e o perigo do complexo de Deus. Sobre a hubris humana e o poder vingativo do instinto animal perante a arrogância intelectual e científica. Tudo isto polvilhado de forma inesperada por pontuais e emocionantes cenas de acção. Porém, Gray não está interessado no fogo de artifício proporcionado pelo género, e a descomplexada e pragmática visão das viagens espaciais — experiências de verdadeiro deleite audiovisual pelo adorno das peças musicais da autoria de Max Richter e Lorne Balfe — revelam-se apenas um meio para atingir um fim. Tudo se resume à solitária lágrima de Brad Pitt — e por certo junto-me à câmara de eco ao louvar a interpretação do actor — quando, após um lento quebrar da carapaça emocional, Clifford verbaliza para Roy aquilo que no fundo este já sabia ainda antes de embarcar na sua missão: Clifford nunca pensou duas vezes em Roy e na sua mãe depois de os deixar. Finalmente, o acto de contrição: para quê olhar para fora, quando o que importa está mesmo ao nosso lado? E, com esta compreensão, a aceitação e o abdicar do peso que o encalhava no passado, libertando-se para finalmente encarar o futuro com disponibilidade e esperança.
Ad Astra é mais um passo para James Gray no sentido do grande público, muito por culpa de se apresentar como uma aventura espacial e de ter Brad Pitt na boca de cena, no entanto sem fazer grandes concessões no que diz respeito ao seu estilo. De uma literalidade desconcertante, onde muitos outros filmes do género optaram pela ambiguidade, é mais um título muito pessoal que consolida uma obra de inabalável consistência temática, sendo também talvez o primeiro em que se vislumbra um lado optimista do realizador.
O episódio do podcast Segundo Take dedicado a Ad Astra pode ser ouvido aqui. Também está disponível um integral das longas-metragens realizadas por James Gray em três episódios: episódio um, episódio dois e episódio três.