As celulazinhas cinzentas do Poirot de Agatha Christie
No próximo episódio de Universos Paralelos, António Araújo (Segundo Take) e José Carlos Maltez (A Janela Encantada) investigam a obra de Agatha Christie, tendo como principal suspeito o excêntrico detective belga (e não francês) Hercule Poirot. O episódio 35 já se encontra disponível em www.segundotake.com/universos-paralelos.
Em 1920, o mundo literário foi surpreendido pelo nascimento de mais um mito. Pela pena da inglesa Agatha Christie, mulher de boas famílias habituada a viver no luxo e conforto da aristocrática e snob classe alta britânica, chegavam-nos histórias de crimes violentos, mistérios impensáveis e personagens maiores que a vida.
Entre eles, e logo nesse primeiro volume intitulado A Mysterious Affair At Styles, era-nos dado a conhecer Hercule Poirot, o excêntrico detective belga, pequeno, de modos obsessivo-compulsivos, aspecto janota e impecável bigode. Para si, todo o mistério era uma questão de tempo, de reunir factos e deixar as suas celulazinhas cinzentas deslindar as histórias mais imperscrutáveis e os enredos mais obscuros, surpreendendo todos os interessados e reclamando para si o título de maior detective do mundo.
A fama de Agatha Christie não mais parou de crescer, e, mesmo que nos desse a conhecer muitos outros heróis detectivescos como a divertida dupla Tommy and Tupence, o austero Superintendente Battle, o simpático Coronel Race, o misterioso Harley Quin ou a popular Miss Marple, foi sempre Hercule Poirot o preferido do público, numa obra que ascendeu a 33 romances, duas peças de teatro e mais de 50 contos dedicados ao pequeno belga.
Distinguindo-o da grande inspiração e referência incontornável que é Sherlock Holmes, Agatha Christie desenhou Poirot como um extremo racionalista, especialista em ler comportamentos e motivações humana, habituado a tratar entre a aristocracia, geralmente em ancestrais mansões do bucólico countryside inglês, e senhor de um grande ego que levava à tradicional teatralidade de finais apoteóticos no que ficou conhecido como a “conclusão da sala de estar” (drawing room conclusion) em que todos os intervenientes eram reunidos para assistirem à dissertação final do detective que culminava com a revelação do criminoso.
Mesmo com Agatha Christie a fartar-se de Poirot e a escrever-lhe a morte (num conto de 1942 selado para ser editado só após a morte da autora), a fama de Poirot transcendeu a literatura, e cedo alastrou a outros meios.
Foi primeiro o teatro, com a primeira adaptação (Alibi) a ser levada à cena em 1928 com o grande Charles Laughton a encarnar o primeiro Poirot de carne e osso. O cinema descobriu o detective belga numa série de três filmes nos anos 30 interpretados por um Austin Trevor sem bigode. Seguiu-se a primeira machadada de Hollywood numa comédia satírica interpretada por Tony Randall, até chegarmos à primeira super-produção quando Sidney Lumet adaptou O Crime do Expresso do Oriente, fazendo de Albert Finney o rosto de Poirot para o grande público antes das produções que fizeram do sempre excêntrico Peter Ustinov o Poirot dos anos 80.
Mas foi, talvez, a televisão que trouxe a Poirot a fama (e imagem) definitiva. Com algumas tentativas pontuais que viram actores conhecidos como José Ferrer, Alfred Molina e Ian Holm encarnarem o detective, foi quando a ITV deu a David Suchet, em 1989, a oportunidade de filmar todas as histórias de Poirot numa série que se estendeu até 2013 que o mundo encontrou aquele que para muitos é o verdadeiro Hercule Poirot.
E hoje, mesmo que nós, com o cinismo dos tempos modernos e o excesso de exposição a tantos livros, filmes e séries que exploram personagens e histórias claramente inspiradas em Agatha Christie, já adivinhemos os twists e consigamos antever os mistérios, o fascínio de Poirot continua vivo, seja em reinvenções, como a da série The ABC Murders com John Malkovich, ou nas produções espampanantes de Kenneth Branagh, apostado em criar uma série de filmes com as histórias mais populares do detective belga.
Afinal, quem não quer estimular as suas celulazinhas cinzentas?
José Carlos Maltez, Novembro de 2020.
Fontes primárias
Literatura
33 romances e mais de 50 contos, publicados entre 1920 e 1975 (tradução portuguesa por Livros do Brasil: Colecção Vampiro Gigante - Obras Completas de Agatha Christie)
Adaptações ao teatro (selecção)
Alibi (Michael Morton, 1928)
Black Coffee (Agatha Christie, 1930)
Murder on the Orient Express (Ken Ludwig, 2017)
Adaptações ao cinema (selecção)
Alibi (Leslie S. Hiscott, 1931) [int. Austin Trevor]
Black Coffee (Leslie S. Hiscott, 1931) [int. Austin Trevor]
Lord Edgware Dies (Henry Edwards, 1934) [int. Austin Trevor]
O Alfabeto do Crime (The Alphabet Murders, Frank Tashlin, 1965) [int. Tony Randall]
Um Crime no Expresso do Oriente (Murder on the Orient Express, Sidney Lumet, 1974) [int. Albert Finney]
Morte no Nilo (Death on the Nile, John Guillermin 1978) [int. Peter Ustinov]
Morte ao Sol (Evil Under the Sun, Guy Hamilton, 1982) [int. Peter Ustinov]
Morte Entre as Ruínas (Appointment with Death, Michael Winner, 1988) [int. Peter Ustinov]
Um Crime no Expresso do Oriente (Murder on the Orient Express, Kenneth Branagh, 2017) [int. Kenneth Branagh]
Morte no Nilo (Death on the Nile, Kenneth Branagh, 2020) [int. Kenneth Branagh]
Adaptações à televisão (selecção)
Hercule Poirot (1961) [episódio piloto, int. José Ferrer]
Hercule Poirot (John Brahm, 1962) [episódio da série General Electric Theater, int. Martin Gabel]
A Noite de Lord Edgware (Thirteen at Dinner, Lou Antonio 1985) [telefilme, int. Peter Ustinov]
Poirot e o Jogo Macabro (Dead Man's Folly, Clive Donner, 1986) [telefilme, int. Peter Ustinov]
Tragédia em Três Actos (Murder in Three Acts, Gary Nelson, 1986) [telefilme, int. Peter Ustinov]
Murder by the Book (Lawrence Gordon Clark, 1987) [telefilme, int. Ian Holm]
Poirot (ITV, 1989-2013) [70 episódios, int. David Suchet]
Murder on the Orient Express (Carl Schenkel, 2001) [telefilme, int. Alfred Molina]
The ABC Murders (Amazon Studios, 2018) [3 episódios, int. John Malkovich]
Fontes Secundárias
Literatura
Christie, Agatha (1977) - An Autobiography. Glasgow: Collins.
Morgan Janet P. (1984) - Agatha Christie: A Biography. London: Harpercollins Pub Ltd.
Thompson, Laura (2008) - Agatha Christie: An English Mystery. London: Headline Review.
Telefilme
Agatha Christie: A Life in Pictures (Richard Curson Smith, 2004)
Documentários
Agatha Christie: 100 Years of Poirot and Miss Marple (BBC, 2020)
Perspectives - The Mystery of Agatha Christie (ITV, 2013)
Being Poirot (ITV, 2013)