Segundo Take

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Babylon

Desde que apareceu em cena, em 2014, com o seu segundo filme, Whiplash, Damien Chazelle nunca mais deixou de ser convidado para a festa dos Óscares. Whiplash foi nomeado a 5 estatuetas, incluindo Melhor Filme, e levou 3 para casa: Actor Secundário, para J. K. Simmons, Montagem e Mistura de Som. O filme seguinte, La La Land, foi nomeado para 14 Óscares — o que, muito provavelmente, deve ser um recorde qualquer —, e acabou com 6, incluindo o prémio de Melhor Realizador para Chazelle, quando contava com apenas 32 anos — isto sim, um recorde, tornando-se no mais novo realizador alguma vez premiado. Protagonizou também um dos momentos mais caricatos da história das cerimónias da Academia ao ver o Óscar de Melhor Filme arrancado literalmente das mãos depois de um deslize monumental no momento de anunciar o vencedor. Mas todos conhecem bem essa história, certo? O Primeiro Homem na Lua, drama biográfico de Neil Armstrong, e a primeira realização de um argumento escrito por terceiros, teve uma carreira mais discreta, tanto nas bilheteiras como nos Óscares. Ainda assim, foi nomeado em 4 categorias técnicas, levando para casa o prémio referente aos Efeitos Visuais.

Apesar da curta carreira, a estreia de Babylon parece o culminar dos seus interesses temáticos: a obsessão, o excesso, a música e a própria indústria cinematográfica americana. Isto é, reduzindo a uma palavra, Hollywood. Pela primeira vez, um filme de Damien Chazelle dividiu opiniões e teve um fraco desempenho comercial, o que, dado o seu orçamento de aproximadamente 80 milhões de dólares, parece prenunciar um fracasso de bilheteiras. Isto, talvez, porque Babylon não é apenas um filme sobre obsessão, excesso e Hollywood com música à mistura, é também ele um filme obsessivo e excessivo sobre Hollywood, com a música mais uma vez a ter um papel fundamental no resultado final. Talvez este não seja exactamente um retrato histórico factual do que foi Hollywood há 100 anos, e sim uma fantasia ligeiramente romanceada da indústria cinematográfica na revolução que foi a introdução do som no grande-ecrã.

Quando comecei a escrever este artigo, questionava-me sobre o que pensaria a Academia das Artes e Ciências de Hollywood desta visão mal-comportada da sua história. Entretanto, foram anunciadas as nomeações aos Óscares, e a resposta foi, de certa forma, dada. Repetindo as mesmas nomeações conseguidas nos BAFTA — Guarda-Roupa, Desenho de Produção e Banda Sonora Original —, este ano não estenderão a carpete vermelha ao jovem realizador. Hollywood adora filmes sobre cinema e sobre si própria, de preferência os que pintam um quadro bonito e apropriado para toda a família, e este ano, nesse departamento, o peso-pesado parece ser mesmo Os Fabelmans, de Steven Spielberg. A ver vamos o que acontece na noite de 12 de Março.

Que as primeiras décadas da indústria cinematográfica instalada na Califórnia não foram regrados pela moral e pela virtude é já sobejamente sabido. Dou-vos alguns exemplos onde podem aprender mais sobre este assunto, caso tenham interesse: Hollywood Babylon, a bíblia dos escândalos das vedetas realizado pelo cineasta avant-garde Kenneth Anger que, presumo, terá inspirado o título do filme; o podcast histórico You Must Remember This, no qual podem ouvir reportagens de fundo com um excelente trabalho de investigação e de escrita por Karina Longworth; e o podcast de conversa do recentemente falecido Gilbert Gottfried, Gilbert Gottfried’s Amazing Colossal Podcast, no qual a média de idades dos convidados estava bem para lá dos 50, convidados aos quais Gilbert tinha muito gosto em arrancar confissões e as histórias mais escabrosas sobre alguns dos mais sumarentos mitos do mundo do entretenimento.

Babylon, o filme, vem agora juntar-se a este manancial, não para expor histórias verdadeiras, mas para construir uma narrativa de ficção populada por personagens que convivem com mitos e lendas da Hollywood dos anos 20 e 30. No entanto, Damien Chazelle está mais interessado em celebrar o Cinema, com C grande, do que em expor os seus podres. É certo que pinta um retrato a espaços de deboche e depravação, e que, em alguns momentos, o seu humor é pueril e escatológico. Ainda assim, Babylon não deixa de ser uma carta de amor à Sétima Arte e aos seus protagonistas, incluindo os seus egos inchados e falhas de carácter; ao milagre conseguido com o captar de imagens, mesmo no meio da loucura; à tactilidade do celulóide; à magia das imagens projectadas numa grande tela.

Mas como acontece com todas as boas festas, segue-se a ressaca, e Chazelle estabelece paralelismos entre o abalo sísmico da introdução do som na indústria, há cerca de 100 anos, e as incertezas actuais no que respeita ao futuro do Cinema, com o ganhar terreno dos serviços caseiros de streaming. Se filmes sonoros parecem hoje a evolução lógica e natural, à data levantou muitas questões, e acabou com muitas carreiras de actores incapazes de se adaptarem aos desafios técnicos impostos pela gravação da sua voz. Apesar de ficcionado, Babylon acaba por funcionar como uma compilação de acontecimentos que seriam mais tarde encenados no clássico Serenata À Chuva, que tem no centro da sua trama e do seu humor precisamente o aparecimento dos talkies. Quem sabe se daqui a uns anos, não olharemos também o momento actual como um período charneira dum futuro que agora ainda não sabemos qual é?

Babylon conta com um ensemble no seu elenco, mas pode-se dizer que a figura central é Manny Torres, interpretado por Diego Calva. Manny é um faz-tudo para poderosos produtores de Hollywood com ambições de entrar na indústria, e a sua história cruza-se numa festa de excessos, taras, drogas e sexo com Nellie LaRoy, encarnada por Margot Robbie, uma impetuosa aspirante a estrela, e Jack Conrad, Brad Pitt, um popular actor de cinema mudo. Tangencialmente, acompanharemos também Lady Fay Zhu, uma cantora de cabaré interpretada por Li Jun Li, Sidney Palmer, Jovan Adepo como um trompetista de jazz, e Elinor St. John, uma jornalista de mexericos encarnada por Jean Smart. Todos têm os seus momentos relevantes, com o filme a namoriscar com a xenofobia do olhar sobre o outro, o racismo ou o papel da imprensa na construção do mito de Hollywood, mas Chazelle não investe de corpo e alma nestes pequenos desvios, estando mais interessado no trio protagonista.

Diego Calva é a âncora do espectador, o jovem sonhador, fiável e de confiança, que vai vivendo o sonho, sendo lentamente arrastado para a loucura e excesso da indústria, por ela mastigado e assimilado. Brad Pitt, nesta fase da carreira, parece confortável a ser, basicamente, Brad Pitt, emprestando alguma melancolia a Jack, ao ver a sua relevância escapar de mãos dadas com o cinema mudo. Margot Robbie, como vai sendo habitual, é quem rouba o holofote, sendo destemida na sua interpretação da destravada Nellie, uma personagem complicada a quem, mesmo depois de alcançar o sonho, parece faltar algo fundamental. Pelos vistos, a felicidade é mesmo um sentimento fugaz, e não um estado duradouro.

Brad e Margot protagonizam paralelamente aquela que é a melhor sequência do filme, na qual, no meio do caos, de inúmeros plateaus de filmagem lado a lado, de câmaras partidas, de um pôr-do-sol fugidio, da bebedeira de Jack e da inexperiência de Nellie, a magia do cinema acontece no preciso momento em que as câmaras começam a rodar, como um feliz acaso que só poderia dar certo naquelas precisas condições, com aquelas pessoas à frente das câmaras, o star power, se assim quisermos chamar. Um momento tão único que até uma frágil borboleta parece querer testemunhar. Outro momento digno de nota, e que faz eco com um dos temas de Whiplash, e obsessão do seu protagonista, é conversa entre Jack e a jornalista Elinor St. John na qual se fala da imortalidade que Hollywood concede às suas estrelas, trazidas para a vida e relembradas a cada exibição de um filme muitos anos depois da morte do artista. Também aqui se fala da superação da mortalidade e da banalidade através do reconhecimento do valor artístico.

Mais uma vez, a música volta a ser fulcral num filme de Damien Chazelle. Apesar de tecnicamente não ser um musical, tem a energia de um, para o qual é essencial a vibração das composições do colaborador habitual de Chazelle, Justin Hurwitz, mais um menino prodígio de apenas 37 anos que já conta com dois Óscares, ganhos com La La Land, e quatro Globos de Ouro, um deles obtido precisamente com este filme. Se grande parte das mais de 3 horas de duração de Babylon é delirante e entusiasmante, é-o em grande medida com a ajuda da música propulsiva e celebratória de Hurwitz composta para esta banda sonora que se tornará obrigatória em todas as festas caseiras em 2023. Fica só o aviso. No meio do entusiasmo, cuidado com os elefantes: não se coloquem atrás deles.

A festa babilónica, perdoem-me a expressão, com que o filme arranca dá-lhe o tom para o que aí vem, um épico expansivo e episódico no qual podemos mapear o percurso das várias personagens principais e das suas infindáveis relações com um conjunto de figuras secundárias, algumas das quais, como as actrizes que interpretam as várias mulheres de Jack, a habitarem o filme durante apenas uma singela cena. Dos nomes mais reconhecíveis, listo Lukas Haas, Katherine Waterston, Flea, Jeff Garlin, Eric Roberts, Samara Weaving e Olivia Wilde. Mas os destaques têm de ser dados a Tobey Maguire, também produtor do filme, como um perigoso mafioso no segmento em que o argumento é menos aventureiro e cede a convenções narrativas, e, o meu favorito, Spike Jonze como um realizador alemão com um sotaque escandalosamente insultuoso e hilariante ao mesmo tempo.

Não quero terminar de falar sobre Babylon sem partilhar a minha experiência de visualização. Normalmente, se tenho opção de ver um filme em IMAX, este é o meu formato preferido. Mas, neste caso, como não tinha informação de este filme em particular ter sido rodado com câmaras nativas de IMAX, optei por uma sessão normal. Calhou-me em sorte a Sala 3 dos Cinemas NOS no CascaisShopping, com uma tela pouco maior que a minha televisão em casa. Bom, na verdade, é um pouco maior, por isso tentei relaxar e não me preocupar muito. Além disso, é uma sala equipada com o sistema Dolby Surround 7.1, por isso o que podia correr mal? Bom, basicamente, mal o filme começa, é imediatamente notório que a luminosidade do projector não estava ajustada no nível ideal, nem de perto, e em todas as cenas de festa ou de interiores, quase não conseguia ver as caras dos actores e mal se discerniam as suas acções, tendo de semicerrar os olhos e esforçar a vista. Se calhar, devia ter reclamado, mas depois é um pau de dois bicos porque perco um bom bocado do filme com poucas probabilidades de ver o problema resolvido. Por isso, atenção às condições de exibição dos vossos filmes em sala. Exijam qualidade com a vossa carteira, e dêem preferência às salas que se preocupam com as condições de projecção. Eu sei que, depois desta experiência, não vou deixar a escolha da sala em que vejo um filme ao acaso, e pretendo elaborar uma lista negra de salas abaixo do padrão de qualidade, a começar com esta.