Segundo Take

View Original

Episódio #2 - Crimson Peak: A Colina Vermelha / Eles Vivem

Your browser doesn't support HTML5 audio

Episódio #2 - Crimson Peak: A Colina Vermelha/Eles Vivem António Araújo

Guillermo del Toro anunciou que pretendia com Crimson Peak: A Colina Vermelha conseguir com um filme em língua inglesa reproduzir o tom e espírito dos seus filmes em língua espanhola: Cronos, Nas Costas do Diabo ou mesmo O Labirinto do Fauno. Filmes assombrados onde del Toro lidava com um dos seus medos de infância: fantasmas. Em entrevista o realizador mexicano confessou ter um medo de morte, em criança, de fantasmas e outros monstros no armário. Terá sido quando decidiu fazer as tréguas com os mesmos que conseguiu lidar com o medo paralisante. Muita da sua filmografia parece uma forma contínua de terapia. 

Del toro tem sido muito cuidadoso a lidar com a promoção de Crimson Peak. Apesar dos trailers enganadores que nos vendem um clássico filme de terror, o realizador tem feito questão de nos dizer que este é uma história de amor que também contem fantasmas. E se é verdade que será enganador catalogar redondamente o filme no género de terror também não será rigoroso chamar-lhe uma história de amor, com ou sem fantasmas. Crimson Peak é, indubitavelmente, uma história gótica.

A ficção gótica popularizou-se no século XIX por nomes como Mary Shelley ou Edgar Allan Poe. O género era considerado menor muito por causa dos elementos sobrenaturais e, apesar da realidade social da altura existiram na era vitoriana alguns casos de literatura gótica de pendor feminista, do qual Jane Eyre de Charlotte Brontë é um dos mais conhecidos exemplos. Exploravam a clausura doméstica da mulher e a sua sujeição à autoridade patriarcal bem como as tentativas transgressoras e perigosas de subverter e escapar a tais restrições.

Este é o enquadramento de Crimson Peak que tenta ao mesmo tempo ser uma homenagem ao género, uma entrada legítima no mesmo e um meta-comentário à audácia de o ser num filme de estúdio em pleno século XXI. Mia Wasikowska é Edith Cushing, muito possivelmente referência a Peter Cushing, célebre actor dos filmes góticos da Hammer. Edith é uma escritora a tentar editar o seu livro, que não é de terror, note-se: apenas contém fantasmas. Guillermo del Toro fala-nos através da sua personagem e introduz-nos de forma sumptuosa no seu universo com uma produção visual de luxo, cheia de cor e simbolismo, onde o vermelho do sangue é uma constante, literal e simbólica. Esta personagem de coração puro e inocente vê-se atraída por um estranho alto e misterioso, Tom Sharpe, interpretado por Tom Hiddleston. Na sequência da inevitável história de amor o casal muda-se para a mansão decrépita de Thomas em conjunto com a irmã deste, Lucille, uma Jessica Chastain numa interpretação que revela algo de misterioso mal disfarçado à flor da pele.

O desenrolar da história tem pouco de original. Um espectador experimentado percebe para onde se dirige bem antes de lá chegar. Mas a execução é um óptimo exercício de atmosfera e de direcção de arte. A honestidade da abordagem de Guillermo del Toro e a força da sua convicção elevam o argumento e ultrapassam as suas limitações. Mia Wasikowska ainda está por dar um passo em falso e revela um bom equilíbrio entre donzela em perigo e mulher de recursos. Tom Hiddleston é eficaz no papel do baronete com um segredo e Jessica Chastain, ou está brilhante ou em completo overacting: ainda não percebi.  

Em nome do rigor Crimson Peak: A Colina Vermelha não é um filme clássico de terror mas é aos fãs deste género que mais vai apelar. Os sustos não são muitos nem grandes mas o ambiente e a violência ocasional não é para estômagos fracos e o final é um movimento Grand Guignol que tinge a neve de vermelho quase na mesma proporção que a argila que dá nome ao filme.


Neste episódio vou falar-vos de Eles Vivem, They Live no original, um filme de 1988 de John Carpenter e faço desde já o aviso: sou fã desavergonhado deste filme. Se As Forças do Universo e Krull-Além da Imaginação foram filmes que só recentemente tive oportunidade de ver, Eles Vivem representa o oposto. Este foi o primeiro filme que vi sozinho no cinema. Esta frase pode não significar muito para a maioria de vós mas se imaginarem um miúdo de 12 anos em 1989 com tempo para matar e dinheiro da mesada no bolso, podem imaginar a sensação de libertação e emancipação de entrar sozinho numa sala de cinema - o saudoso Oxford em Cascais - num filme adulto e supostamente proibido para tal tenra idade. A falta de controlo no acesso aos cinemas no nosso país apenas serviu para empolar o meu gosto por uma cinefilia de transgressão e providenciou-me um genuíno prazer que foi ver este filme.

A escolha de filme não foi casual. John Carpenter já era nome por mim conhecido e depressa a sua filmografia me tinha cativado. Nunca foi um realizador subtil mas isso não lhe fica mal. Ninguém pode ser acusado de ser quem é, sem fingimentos. Carpenter sempre confessou a sua paixão pelos Westerns. Por azar dele, e sorte nossa, foi nos géneros de terror e da ficção científica que teve oportunidade de fazer carreira realizando filmes de género impregnados do espírito do velho oeste. É assim Assalto à 13ª Esquadra, Nova Iorque 1997 ou mesmo Veio Do Outro Mundo.

Há uma constante em grande parte da filmografia de John Carpenter: os seus personagens principais são personagens encurralados pela força das circunstâncias. Seja fisicamente ou por obrigação sob ameaça ou mesmo por forças sobrenaturais. Em Eles Vivem este dispositivo é usado numa história que resultou da reação de Carpenter ao Reaganismo e ao florescer de uma sociedade materialista e de consumo nessa década.

A sátira é elaborada através do conceito que o inimigo já está no meio de nós. Apenas o uso de uns óculos especiais nos permite ver a verdade: estamos rodeados por alienígenas que ocupam lugares de poder e governaçãoe, desde a televisão, até às revistas e reclamos publicitários, tudo serve para nos controlar e subjugar subliminarmente. Em mais uma demonstração do óbvio o personagem principal, interpretado pelo ex-wrestler Roddy Piper chama-se Nada. E é de Nada que irá depender a única esperança da humanidade descobrir o segredo alienígena.

Eles Vivem tem um orçamento relativamente reduzido e foi o segundo filme, após O Príncipe das Trevas, com que Carpenter rechaçou do fracasso d’As Aventuras de Jack Burton Nas Garras do Mandarim. Este é um dos seus encantos pois, apesar do orçamento, a destreza visual de Carpenter faz com que todos os meios à sua disposição sejam utilizados com a maior eficiência. Além disso a concepção visual do sub-mundo revelado pelos óculos é bastante evocativa e económica. Assente nestes elementos, o argumento minimalista oferece-nos momentos de antologia, tais como o famoso diálogo da pastilha elástica ou a peça central do filme: uma cena de pancadaria entre dois amigos que, por teimosia, dura mais de cinco minutos.

Eles Vivem é um verdadeiro filme de culto. Dificilmente aparece em listas dos melhores ou é mencionado em retrospectivas. Porém considero-o imprescindível para quem tenha algum interesse, mesmo que passageiro, na filmografia de John Carpenter.

Por favor não se esqueçam de rebobinar...