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Episódio #3 - As Mil E Uma Noites / O Que Fazemos nas Sombras

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Episódio #3 - As Mil E Uma Noites/O Que Fazemos Nas Sombras António Araújo

Miguel Gomes é um cineasta único. Não conheço toda a sua filmografia mas bastará Aquele Querido Mês de Agosto e agora o tríptico As Mil e Uma Noites para perceber que tem uma voz única e original. Considero, além disso, que a sua voz é imprescindível pois, pelo menos com estes dois filmes, Miguel Gomes documenta uma visão bastante acutilante do que é ser português no princípio do século XXI.

Estamos a milhas das visões pitorescas e condescendentes de telenovelas e outras ficções televisivas que brindam quem diariamente opta por ligar o terrível aparelho em suas casas. Tão pouco é a sua visão a de um historiador ou de mero documentarista. Através de uma mistura única - lá está a palavra outra vez - de documentário e ficção Miguel Gomes dá voz a personagens reais e fictícias e usa os seus filmes como meio de se exprimirem contando histórias reais, não por assim terem acontecido mas por serem verdadeiras. E que país vemos reflectido nos seus filmes?

Se em Aquele Querido Mês de Agosto viamos os segredos e intrigas que borbulhavam por baixo do verniz da normalidade de uma típica aldeia do interior rural português em plenas festividades de Verão, As Mil e Uma Noites pega nos mesmos dispositivos formais e alarga o âmbito em a ambição propondo-se a retratar histórias decorridas durante um ano do país em crise sob o jugo da troika.

O enquadramento é a estrutura narrativa d'As Mil e Uma Noites com Xerazade a contar histórias para apaziguar o seu marido, o violento Rei Shariar. Tal como proferido pela própria no Volume 3, O Encantado, parafraseando, "As histórias nascem dos desejos e dos medos dos homens. Servem para para nos ajudar a sobreviver e para ligar o tempo dos mortos ao tempo dos que hão-de viver." Esta passagem, bem como a dedicatória à filha de 8 anos no fim deste mesmo volume, é uma declaração de intenções porque As Mil e Uma Noites oferece uma reflexão através de histórias que reflectem o estado de espírito, as ansiedades, os sonhos (ou falta deles) do nosso país.

Desta forma o filme é um caleidoscópio de observação, sátira, reflexão, comédia, drama, documentário, ficção e fantasia que, se no primeiro volume traz alguma leveza, no segundo volume carrega uma melancolia tão lusitana na sátira em jeito de tragédia grega que tem como peça central um julgamento simbólico de todo o povo português. É um olhar crítico, também, o de Miguel Gomes, não se limitando a condescender com o povo mas virando a câmara também para os seus defeitos e fraquezas.

O terceiro volume foi o que ligou menos comigo mas ainda assim apresenta certas analogias entre o tema do filme e o acto de o contar e de contar histórias em geral. Debruça-se sobre um hobbie do qual nada conhecia, o mundo fascinante de passarinheiros de bairros da periferia de Lisboa e dos seus concursos de cantoria de tentilhões. As suas histórias estão intimamente ligadas a estes bairros de habitação social de Lisboa. São histórias que normalmente ficam à margem das visões idealizadas e turísticas da cidade e, parafraseando desta vez o realizador no Volume 1, "há aqui uma qualquer analogia a fazer mas sou muito burro para saber qual é!"


Hoje na segunda parte do programa vou-vos falar de um filme de 2014 que finalmente estreia nas salas portuguesas: O Que Fazemos Nas Sombras, de Jemaine Clement e Taika Waititi. Quando pensamos em cinema neozelandês dois nomes são normalmente referenciados: Jane Campion e Peter Jackson. Dois cineastas bastante distintos mas que ganharam notoriedade internacionalmente com O Piano e a saga d’O Senhor dos Anéis respectivamente.

Outra exportação neozelandesa de sucesso é a dupla Jemaine Clement e Bret McKenzie que, juntamente com James Bobin criaram a série televisiva Flight of the Concords, apelidada por muitos como uma das melhores séries de comédia alguma vez produzidas. Enquanto Bret e James se entretinham com o regresso dos Marretas ao grande ecrã, Jemaine juntou-se ao compatriota Taika Waititi para nos oferecer uma comédia de terror com uma premissa original: o retrato do dia-a-dia de quatro vampiros, Viago, Vladislav, Deacon e Petyr,  que partilham apartamento e as complicações inerentes a esta vivência, tais como a divisão de tarefas, ou o cuidado a ter com a mobília quando alguém se alimenta e não é cuidadoso com o sangue da vítima.

O formato escolhido funciona a favor do filme mas também em seu detrimento. Mais do que um mocumentary, ou seja, gozação em forma de documentário, do qual This Is Sinal Tap é um dos maiores exemplos, O Que Fazemos Nas Sombras usa o registo popularizado pelo The Office de Ricky Gervais: o da equipa de reportagem que segue os personagens aparentemente vinte e quatro horas por dia. O lado negativo desta abordagem é a saturação do registo e o facto de, tal como o género de found footage, servir-se muitas vezes de atalhos narrativos preguiçosos. O lado positivo é a possibilidade de se definir rapidamente e sem rodeios a premissa do filme, e de ter as personagens principais a revelaram, na primeira pessoa, motivações ou esclarecimentos no que respeita à trama. Além da maior vantagem de todas, quando bem usada, que é a possibilidade de proximidade e verosimilhança da acção retratada.

Outro risco é o improviso. Comédia de improviso, como O Que Fazemos Nas Sombras, onde a acção é delineada à partida mas os diálogos são improvisados pelos actores, dependem muito da qualidade destes e, se é verdade que ultrapassando a crueza inicial do registo Jemaine e Taika vão desconstruindo de forma segura, inteligente, e por vezes hilariante, o género vampírico, também é verdade que há um par de cenas que não funcionam, nomeadamente a cena do jantar e o da revista pela polícia ao apartamento.

Mas Jemaine e Taika demonstram conhecimento e afecto pelo género na forma como representam a variedade de vampiros. Desde o grotesco ao estilo Nosferatu - Petyr, passando pelo refinado aristocrata do século XVIII, à lá Lestat - Viago, ou mesmo o sádico empalador Vlad - neste caso Vladislav, The Poker. Além disso a sátira é subtil e acutilante fazendo mira tanto a lugares comuns canónicos como a filões mais recentes tais como a rivalidade tão em voga actualmente entre os seres da noite e os lobisomens. Aqui o estereotipo é virado do avesso com os licantropos a revelarem-se pessoas de carácter bastante consciente, racional e educado. Ou mesmo o conceito de que o vampirismo é glamoroso, ideia que ao longo do século passado foi-se consolidando num processo de mutação das características sexuais do vampiro em características sexy e atraentes.

O Que Fazemos Nas Sombras não está preocupado com trama. Esta é desenvolvida apenas o suficiente para pendurar as situações divertidas que são o verdadeiro sumo deste filme. Tenham é cuidado para não salpicar o sofá...