Episódio #22 - O Exorcista - A saga a as suas prequelas
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Tinha programado, para este episódio, falar de Paradise Lost: The Child Murders at Robin Hood Hills, um documentário de 1996 produzido pela HBO que acompanha o caso do horrível assassinato de três crianças de oito anos em West Memphis, no estado Norte Americano de Arkansas, seguido da prisão e julgamento de três adolescentes pelos crimes. Estes três rapazes, acusados pela população de celebrarem rituais satânicos, sempre mantiveram a sua inocência e insistem que serviram de bode espiatório por causa da roupa que vestiam e da música heavy-metal que ouviam. Este é um documentário de referência do qual ouvi falar a propósito da série Making A Murderer, que explora, tal como este, as falhas do sistema judicial norte-americano e a disposição das forças policiais para dobrar as regras na construção de uma acusação quando são pressionadas para encontrar os culpados de um caso tão dramático e mediático como o assassinato de três crianças.
Paradise Lost mostra-nos os dois lados da mesma história e permite-nos assistir ao atropelo da presunção da inocência nos momentos de maior dor pelos familiares das vítimas, alimentado pelo preconceito, intolerância e incompreensão de quem é diferente e não se comporta de acordo com a norma. É um filme chocante, tanto pelas imagens não censuradas do local do crime como pelos comportamentos dos intervenientes, mas também envolvente, pelas suas implicações e ramificações. Paradise Lost teve duas sequelas dos mesmos autores, que acompanharam o evoluir da história ao longo dos anos. Existe também um documentário recente sobre o mesmo tema, West of Memphis, de 2013, bem como um filme de ficção do mesmo ano de Atom Egoyan baseados nos assassinatos e no julgamento posterior. Interpretado por Colin Firth e Reese Witherspoon tem por título Devil's Knot - Os Condenados.
Esta longa introdução tem vários objectivos: em primeiro lugar dar a conhecer estas obras documentais que considero imprescindíveis para qualquer fã do género; depois para informar que, se realmente decidir fazer um episódio sobre Paradise Lost no futuro, terei de digerir os seus três capítulos, bem como os outros dois filmes, dada a minha micro-obsessão-compulsão para estas coisas. Como compreenderão, dada a natureza do tema, terei de espaçar o consumo destas obras; finalmente para justificar a minha escolha do tema de hoje - ao ver os adolescentes acusados de satanismo lembrei-me imediatamente de O Exorcista e, ao reflectir sobre o filme, ocorreu-me como as sequelas guardam histórias fascinantes - não propriamente as que contam, mas sobre o processo que as levou ao grande ecrã.
Sou um apaixonado pelo processo fílmico e acho infinitamente interessante o caso da prequela de O Exorcista. Em 2004 Paul Schrader filma Exorcista - O Princípio, mas quando entrega aos executivos um thriller psicológico, em vez dum filme sangrento e "comercializável" - entre aspas - foi despedido do projecto. Foi então contratado Renny Harlin, o tarefeiro finlandês com alguns êxitos no currículo, que refez a história e parte do casting e voltou a filmar quase a totalidade das cenas que acabaram na sua versão. Quando esta falhou crítica e comercialmente a produtora Morgan Creek, na esperança de recuperar algum do investimento perdido neste processo, permitiu que Schrader terminasse a sua visão, financiando um valor reduzido para efeitos visuais e pós-produção e estreando o filme em alguns festivais e nalguns mercados com o título Dominion: A prequela de o Exorcista. Independentemente da qualidade destes filmes temos a rara oportunidade de ver aquilo que, na maioria das vezes, nunca veria a luz do dia, permitindo-nos ver duas versões da mesma história radicalmente diferentes, por dois autores de sensibilidades e talentos distintos. Mas já lá vamos à análise destes dois filmes. Voltemos agora um pouco atrás para começarmos pelo princípio.
Em 1973 William Friedkin lançou o pânico nas salas de cinema de todo o mundo. A exibição de O Exorcista afectou de tal forma quem o viu que houve relatórios de chamadas de paramédicos a salas de cinema para assistir pessoas por desmaio e ataques de histeria. O seu estilo directo, seco e quase documental sublimou o medo visceral da encarnação do mal que possuía uma inocente adolescente. Quer se acredite ou não em Deus é inegável o poder das imagens que Friedkin imprimiu no consciente colectivo onde os padres Merrin e Karras, Max Von Sydow e Jason Miller respectivamente, se debatem com uma entidade demoníaca na forma de Reagan, interpretada por Linda Blair, perante o desespero impotente da sua mãe Chris, num desempenho de Ellen Burstyn.
William Petter Blatty, adaptando o seu próprio romance homónimo, colaborou estreitamente com Friedkin naquele que se tornou o filme mais rentável da Warner Bros até aos dias de hoje, ajustando a inflação. O Exorcista foi o primeiro filme de terror a ser nomeado para o Oscar de Melhor Filme. Apesar disto Blatty rejeita a categorização e afirma que é uma história sobre Deus, uma obra apostólica que pretende ajudar as pessoas nas suas próprias questões de fé.
Em 1977 foi produzida uma das mais mal amadas sequelas de todos os tempos: O Exorcista II: O Herege. Sem o envolvimento de Blatty ou Friedkin, e com o regresso de Linda Blair no papel de Reagan, é realizado por John Boorman, que tinha originalmente recusado a oportunidade de realizar o filme original. Com uma filmagem atribulada, incluindo histórias de alcoolismo de Richard Burton, que interpretou o padre Lamont, O Exorcista II resulta de um mau argumento e das suas muitas reescritas enquanto as câmaras rolavam.
Ao contrário da aclamação de O Exorcista, O Exorcista II foi recebido com gargalhadas, escárnio e até, segundo uma história talvez apócrifa, a perseguição de executivos da Warner Bros. numa sala de cinema por espectadores descontentes. É considerado, não só uma das piores sequelas de todos os tempos, mas mesmo um dos piores filmes de todos os tempos e hoje em dia é encarado apenas como uma curiosidade, ignorado no cânone desta curiosa saga cinematográfica. Friedkin, quando questionado sobre o filme, terá dito: "É uma trapalhada estúpida feita por uma pessoa burra - John Boorman, alguém cujo nome não deveria ser pronunciado, mas que neste caso será nomeado. Indecente. Um filme horrível. É um dos piores filmes que eu já vi feito por uma mente demente."
Foi preciso esperar 13 anos para, em 1990, ser produzida mais uma sequela, O Exorcista III, desta vez pela Morgan Creek Productions. O autor do livro original, William Peter Blatty, assina o argumento e a realização, ignorando os acontecimentos do filme anterior e baseando-se no seu romance Legion, sequela temática de O Exorcista com quem partilha algumas personagens, nomeadamente a do Tenente Kinderman, personagem principal no romance, e o padre Karras. Apesar deste envolvimento também este filme teve uma produção atribulada. Com o título homónimo ao livro na etapa inicial da produção, Blatty viu os executivos da Morgan Creek mudarem o nome para O Exorcista III para efeitos comerciais, exigindo na fase de pós-produção, a filmagem de uma cena de exorcismo para incluir na sequência final.
Apesar destas intromissões do estúdio, que alteraram em certa medida a visão de Blatty, este continua a ser um eficiente thriller psicológico, baseado no assassino em série Zodiac, e oferecendo uma reflexão sobre a natureza do mal que, não sendo tão vistosa como a pirotecnia do filme de Friedkin, é no entanto tão perturbante nas suas implicações sobre a nossa relação com o lado mais obscuro da nossa natureza humana.
Começando pel'O Princípio, Exorcista - O Princípio, quero eu dizer, a prequela oficial lançada em 2004 tem na sua génese um erro de casting que ditou o resultado final: o do seu realizador Renny Harlin. Chegado a Hollywood no final dos anos oitenta com o quarto capítulo de Pesadelo em Elm Street, e a sequela ao Assalto ao Arranha-Céus, Assalto ao Aeroporto, viu a sua carreira encurtada com três flops comerciais e críticos no final dos anos noventa: A Ilha das Cabeças Cortadas e A Professional, tentativa de fazer da Geena Davis, sua mulher na altura, uma heroína de filmes de acção, e o “tão mau que é brilhante” Perigo no Oceano, título que deu novo significado à expressão "comédia involuntária”. Digamos que a sensibilidade de Harlin parecia, à partida, incompatível com a temática inerente ao um filme deste franchise que questiona a origem do mal e o papel da fé e da religião na condição humana.
Exorcista - O Princípio confirmou este receio. É um filme que troca alegremente qualquer coerência narrativa por espectáculo gratuito numa tentativa de chocar através de vísceras e efeitos visuais que, apesar da sua fraca qualidade, são usados abundantemente e em cenas cruciais. Os temas do filme são sublinhados a grosso por um argumento que as explicita desajeitadamente e que é encenado por Harlin com uma estética vistosa e oca, tratando inclusivamente a personagem feminina central, a médica Sarah, interpretada por Izabella Scorupco, apenas como objecto de desejo das personagens masculinas, colocando-a no centro de um twist final desengenhoso e inconsistente com o resto da narrativa que trata o material como se se tratasse de um whodunnit transcendental.
Stellan Skarsgård interpreta o Padre Merrin, a personagem de Max Von Sydow no filme original, que perdeu a sua fé, resultado de um episódio dramático que viveu na segunda guerra mundial. A sua cena inicial é reminescente de uma cena em Os Salteadores da Arca Perdida e Merrin é apresentado como um anti-herói arqueólogo, que aceita relutantemente uma missão para recuperar um artefacto histórico e misterioso nos confins da África Oriental, onde uma igreja cristã, que antecede a data da introdução do cristianismo no local, foi encontrada soterrada. Este é um dos primeiros sinais de alarme do que se sucede e é uma síntese do desligamento entre o material e a abordagem tomada pelo homem que tomou o leme deste projecto à deriva.
O irónico, e fascinante para mim, como já o afirmei, é ter a oportunidade de ver a versão de Paul Schrader, estreada em 2005 como Dominion: A prequela de o Exorcista. Irónico porque, não sendo um filme perfeito, é um filme que, tendo sido rejeitado inicialmente, beneficia infinitamente quando comparado com a versão que o substituiu. Começa por ser mais tradicional, na sua estética, e na linearidade da narrativa, introduzindo o elemento da segunda guerra mundial logo no prólogo, em vez dos flashbacks em forma de puzzle da versão oficial, vamos chamar-lhe assim. Apesar disto, o trauma e a perda de fé de Merrin, novamente Skarsgård, mais interior e assombrado, numa abordagem alternativa ao personagem, é tratada de forma mais subtil num argumento focado, objectivo e económico. Curiosamente o argumentista Caleb Carr, renunciou as alterações que Schrader efectuou ao seu argumento, acabando a defender a versão de Harlin.
A verdade é que Dominion funciona a vários níveis. Os elementos introduzidos são aproveitados da melhor maneira, tal como a tensão entre os colonizadores britânicos e a tribo indígena, que vem exacerbar os dilemas do doutrinamento cristão a povos com outros costumes, bem como a sublinhar as questões teológicas da existência de Deus e da origem do mal. Não sendo um filme de terror, propriamente dito, tem momentos de genuíno choque e é capaz de nos perturbar mas também emocionar. As personagens secundárias são uma parte mais integrante da história, com Rachel a esconder segredos do seu passado, e o Padre Francis a ser peça central, não só nos ações que toma, mas também na forma como inspira Merrin a tomar as suas decisões. Mesmo o gesto final do Major Granville é o resultado, inesperado mas lógico, dos acontecimentos anteriores, ao contrário do acto vazio de significado na versão oficial.
O seu sucesso artístico não invalida alguns elementos que não funcionam a seu favor. Além dos péssimos efeitos visuais, felizmente usados de forma económica, tem como elemento central uma personagem cujo arco implica o renovar da sua fé católica e cristã. Aliás, a própria premissa de um filme do Exorcista implica o pressuposto que o Diabo existe, logo Deus é real. Apesar disto Dominion está mais interessado no efeito do mal enquanto acto humano e no ciclo perpétuo que resulta da sua disseminação. No final o saldo é positivo e recomendo vivamente que o descubram. William Peter Blatty concorda e afirmou, a propósito do filme de Paul Schrader, que "é uma obra bela, elegante e cheia de classe”.