Episódio #26 - 10 Cloverfield Lane / A Noite do Cometa / CINEPOP
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Podem ler o artigo sobre a minha experiência do CINEPOP aqui.
A mera existência de 10 Cloverfield Lane encerra uma série de curiosidades. Em primeiro lugar foi anunciado ao mundo pela Bad Robot, produtora de J.J. Abrams, no princípio do ano, tendo estreado cerca de três meses depois. Caso raro numa conjuntura onde a máquina promocional massacra, na maioria das vezes, ainda a rodagem do filme não começou. Em segundo lugar, e na sequência do ponto anterior, há um golpe de teatro, que é também um golpe de mestre, no facto de este ser um filme que partilha o DNA com Nome de Código Cloverfield, realizado em 2008 por Matt Reeves. Também este projecto tinha sido rodeado de secretismo e teve um sucesso considerável ao cruzar o estilo de registo na primeira pessoa de O Projecto de Blair Witch com o filme de monstros ao estilo de Godzilla.
10 Cloverfield Lane não nasceu como sequela, prequela, reboot ou remake de Nome de Código Cloverfield: é um argumento original de Josh Campbell e Matthew Stuecken, com um polimento de Damien Chazelle, que tinha como título original The Cellar. Quando Abrams percebeu que tinha pontos de contacto temáticos com o filme de Reeves teve a visão de o enquadra nesse universo e, sem grandes explicações do ponto de vista narrativo, abriu a porta a futuros filmes que, por certo, terão este mesmo enquadramento.
Outra curiosidade é o seu realizador: Dan Trachtenberg. Apesar de estreante em longas-metragens conheço o seu nome há algum tempo, originalmente como um podcaster cinéfilo com o sonho de poder vir a realizar filmes - onde é que eu já ouvi isto? Trachtenberg era um dos apresentadores do podcast The Totally Rad Show e aparecia ocasionalmente como convidado no /Filmcast. Em 2011 realizou a curta-metragem Portal - No Escape e começou-se a falar numa possível longa-metragem. Por isso foi uma total surpresa, e um prazer inesperado, ver o seu nome associado a este projecto em colaboração com Abrams. Por causa do género de filme, porque é mais uma inspiração para insistirmos em perseguir e lutar pelos nossos sonhos e porque, por estranho que possa parecer, a relação que criamos com alguns podcasts que ouvimos, me faz encarar este filme como o fruto do trabalho e dedicação de um amigo de um amigo.
Apesar da excelente opção de situar este filme no universo Cloverfield, porque o reconhecimento da marca vai concretiza levar um maior número de pessoas às salas de cinema, a experiência do espectador será beneficiada se não souber nada sobre o filme de antemão. Á partida esta é a grande contradição do seu próprio título, bem como de alguns materiais promocionais que revelam demasiado. Apesar desta opção nitidamente comercial Abrams e a sua Bad Robot vivem um estado de graça junto dos fãs e opinião pública que os isenta de qualquer acusação de cinismo. A ajudar a causa estará a recepção genericamente positiva que o filme tem tido.
Michelle, interpretada por Mary Elizabeth Winstead, abandona a sua relação numa cena inicial atmosférica e com um apurado sentido de narrativa visual. O impacto do genérico resultante, incluindo a banda sonora com travo clássico de Bear McCreary, demonstra uma mão confiante e económica na gestão da mecânica da história que está a ser contada. Ao ser salva de um acidente automóvel por Howard, o sempre fiável John Goodman, Michelle encontra-se refém deste num bunker na companhia de Emmett, interpretado por John Gallagher Jr., que subscreve a história de Howard que afirma ali estarem a salvos de um ataque no exterior que envenenou o ar, matando quem o respirou. Será mesmo verdade ou uma conspiração para a manter presa? Ou será antes um acto isolado e traiçoeiro de Howard, desequilibrado e psicopata, enganando os dois para um qualquer fim malicioso?
Com uma perspectiva muito próxima de Michelle a sua claustrofobia, incerteza e paranóia são por nós partilhadas. Trachtenberg gere com sucesso esta peça de câmara com as três personagens e vai constantemente colocando em causa as nossas crenças através de revelações que vão alterando pendularmente a nossa perspectiva. A caracterização de Michelle, apesar de pouco aprofundada, revela-nos uma mulher de inteligência e carácter, com apurado sentido de sobrevivência. John Goodman é, em igual medida, ameaçador e afável, oscilando subtilmente entre os dois registos, delineando uma fronteira muito ténue entre a sensação de segurança e a ameaça, dinâmica fulcral para o sucesso do empreendimento.
O maior elogio que posso fazer a 10 Cloverfield Lane é que é extremamente tenso. Já foi apelidado de Hitchcockiano, tanto pela premissa de mulher em fuga que se vê ameaçada por um homem aparentemente benigno, como pela construção do suspense, fazendo bom uso da sonoplastia, em conjunto com a música, ou mesmo da ausência de som. Apesar de ser difícil contornar algumas convenções do género Trachtenberg consegue surpreender, desequilibrando as expectativas em certas cenas, e prolongando o suspense ao ponto de ter tido, em determinado momento, o reflexo de levar a mão à frente dos olhos para minimizar o impacto do susto esperado. Uma estreia absoluta, se a memória não me engana.
Não vou revelar o final, que dependendo do conhecimento à entrada da sala de cinema, pode ser completamente inesperado. Eu tive a surpresa estragada, mas penso que era esse precisamente o objectivo dos autores. Seja como fôr compreendo algumas das queixas que consideram a recta final como pertencente a um filme diferente. Mesmo gostando até concordo. Esperemos que o filme a que pertence esse final seja a sequela de 10 Cloverfield Lane.
O que define um filme de culto? Em que circunstância se atribui este título a uma obra? Será quando um filme é pouco visto na sua estreia mas vai sendo descoberto aos poucos, tornando-se numa referência, tal como Blade Runner - Perigo Iminente? Ou será quando um título é apenas conhecido por uma esclarecida minoria, mesmo após trinta anos da sua estreia? Bem sei que, com esta definição, qualquer filme é passível de ser considerado de culto mas a verdade é que o epíteto é usado referindo-se a estas duas situações distintas. A Noite do Cometa, filme de 1984 escrito e realizado por Thom Eberhardt, não é um título popular nem de referência da sua década, ou mesmo do género de ficção-científica de terror com pinceladas de humor. Apesar disso uma rápida consulta à sua página na bíblia cibernauta da referência cinéfila IMDB revela um conjunto inesperado de críticas avassaladoramente positivas. O meu próprio interesse neste título surgiu de uma menção que li num livro que folheava há tempos numa FNAC. Não me lembro do título mas era sobre filmes nunca concretizados e no capítulo sobre o projecto de terror que Steven Spielberg desenvolveu no final da década de setenta chamado Night Skies referenciavam A Noite do Cometa. A sua temática, bem como o misterioso cartaz, bastou para me despertar o interesse e descobrir o filme.
A premissa é típica de um filme de série B: um cometa oblitera a maior parte da população terrestre. Entre os sobreviventes encontram-se as irmãs Regina e Samantha, duas "raparigas do vale” que se vêem forçadas a lutar pela sobrevivência defendendo-se de zombies, sobreviventes afectados pela radiação da passagem do cometa. Permitam-me uma pequena digressão sobre o conceito de “rapariga do vale”: este é um estereotipo sócio-económico do princípio dos anos oitenta que originalmente se referia a raparigas de classe média-alta originárias de San Fernando Valley, cidade vizinha de Los Angeles, mas que se generalizou para englobar qualquer rapariga ou mulher com afectações de vacuidade e um maior interesse em bens de consumo do que qualquer realização pessoal ou intelectual. De volta ao filme, esta foi uma produção de baixo orçamento da Atlantic Release Corporation que procurava capitalizar no seu sucesso do ano anterior, A Rapariga de Los Angeles, no original precisamente Valley Girl, comédia romântica com Nicolas Cage no principal papel. Além disso, filmes com premissas peculiares, como O Clandestino de Alex Cox, gozavam de grande sucesso nesta altura, nomeadamente nos circuitos de drive-in. É óbvia a piscadela de olho a filmes clássicos de ficção-científica, seja por menção directa, ou pelos cartazes pendurados na sala de cinema onde Regina trabalha no princípio do filme. Sem grande escrutínio vislumbram-se títulos como Vieram do Espaço, Corrida da morte do ano 2000 e Nova Iorque, 1997.
Pode não ser original mas ao colocar no centro do elenco duas adolescentes que se sabem defender e ripostam de metralhadora automática em riste perante as ameaças que vão surgindo, A Noite do Cometa revela uma abordagem algo progressista para a época falhando, no entanto, no tom ao tentar uma mistura original, mas não muito bem sucedida, de terror, suspense, tensão, comédia adolescente e sátira. E é uma pena o desperdiçar do seu potencial. Catherine Mary Stewart, já conhecida dos ouvintes do Segundo Take pelo seu papel em O Último Guerreiro no Espaço, é uma presença sólida no papel central de Regina, enquanto que Kelli Maroney é a típica "rapariga do vale” em dose q.b. para não alienar o espectador mas Eberhardt não consegue gerir os vários elementos que constrói e perde-se numa narrativa com falta de foco e objectividade. Pode-se argumentar que é propositado, com alguma boa vontade, reflectindo o estilo de vida das suas personagens mas as suas deambulações parecem menos resultado dos seus carácteres ou da exploração temática da sátira sugerida do que de má escrita. Essa falta de confiança é demonstrada quando, numa referência a Zombie, a Maldição dos Mortos Vivos, filme de 1978 de George A. Romero, Regina e Samantha deambulam por um centro comercial. A crítica que se queria discreta e em pano de fundo é verbalizada numa desajeitada linha de diálogo: “Este é o centro comercial mais próximo, mas toda esta área é um absoluto monumento ao consumismo”.
Mas aquela que acaba por ser a maior falha de A Noite do Cometa é que, para filme de terror cómico, ou mesmo comédia de terror, não é assustador nem particularmente engraçado. Qualquer uma destas características e teria compensado a fragilidade do argumento. Com opções visuais interessantes, usando um filtro alaranjado para significar a passagem do cometa, ou conseguindo boas imagens de Los Angeles deserta, apesar do baixo orçamento, é no entanto, uma demonstração cabal que o mais importante transcende as folhas da contabilidade. É mais fácil fazer-se um mau filme com um bom argumento, que um bom filme com um mau argumento, e A Noite do Cometa, em última instância, não consegue transpor esta barreira.
Por favor não se esqueçam de rebobinar...