Segundo Take

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Crónicas de França do Liberty, Kansas Evening Sun

O cinema de Wes Anderson revela a cada título uma das vozes mais originais do atual panorama cinéfilo norte-americano, com um peculiar sentido estético e visual, aliado ao um estilo narrativo muito próprio, cada vez mais refinado e apurado. Curiosamente, o que poderia constituir um processo de isolamento e alienação de público, tem-se traduzido em aclamação crítica e resultados de bilheteira, com os seus dois últimos filmes, Grand Budapest Hotel e Ilha dos Cães a serem dois dos seus maiores sucessos. Ilha dos Cães foi a segunda incursão de Anderson na animação stop motion, o que faz todo o sentido visto o seu cinema ser o epítome do controlo e da encenação. O seu olhar obsessivo e nostálgico de travo artesanal e retro assenta em recursos estilísticos recorrentes numa permanente captura de um passado que apenas existiu na sua visão romanceada, nomeadamente rápidas panorâmicas, tanto no eixo horizontal como no eixo vertical, zooms antiquados, ao estilo da década de setenta, e um sempre presente efeito casa de bonecas, como que encenando dioramas com personagens de carne e osso – conceito que, curiosamente, é levado ao extremo precisamente em Crónicas de França, a sua estreia mais recente, com movimentadas cenas encenadas como que autênticos quadros vivos com os actores em poses congeladas.

Se fossemos levados a pensar que a estética "Andersoniana" já tinha sido levada ao limite anteriormente, aí temos Crónicas de França – acredite-se ou não, o filme mais Wes Anderson que se poderia imaginar. Quer isto dizer que detractores do realizador (que, em abono da verdade, não agrada igualmente a gregos e troianos) deverão passar ao largo deste filme. Não é aqui que encontrarão argumentos para mudarem a sua opinião. Esta é uma obra para fãs hardcore do realizador norte-americano e, mesmo assim, poderá revelar-se como a prova dos nove para os que se pensam apreciadores integrais da sua obra. (Para os mais curiosos, se procurarem na secção Autores em segundotake.com, encontrarão um ciclo integral que dediquei a Wes Anderson). Por ser um filme de antologia, que junta três histórias principais, mais dois pequenos apontamentos (um dos quais, o dispositivo que o enquadra), por contar com um dos seus elencos mais recheados de talento e caras reconhecíveis, muitos deles em pequeníssimos papéis secundários, e por ser composto por homenagens e referências à tradição literária da revista norte-americana New Yorker, com pouco impacto no nosso país (uma "carta de amor aos jornalistas", como é apregoado nos materiais promocionais), é o seu filme mais movimentado e, atrevo-me a dizê-lo, inacessível num primeiro contacto.

Crónicas de França é enquadrado pela morte de Arthur Howitzer Jr., o habitual Bill Murray como editor das Crónicas de França, um suplemento da publicação norte-americana Liberty, Kansas Evening Sun instalada na fictícia aldeia francesa de Ennui-sur-Blasé (começa logo aqui o humor elegante, mas pouco subtil de Anderson, pois o nome da aldeia traduz-se em algo como "Aborrecimento Sobre Apatia"). Com instruções para suspender a edição da revista no momento da sua morte, os escritores, que sempre foram acarinhados por Arthur — que, por sua vez, apenas lhes pedia que tentassem escrever como se parecesse que o tinham escrito assim de propósito —, recordam o seu editor, compilando alguns dos mais famosos artigos da revista para uma última edição.

O primeiro, The Cycling Reporter, é um breve relato turístico em que Owen Wilson nos dá a conhecer as peculiaridades de Ennui-sur-Blasé com muito humor físico e slapstick à mistura. 

The Concrete Masterpiece, da autoria de J.K.L. Berensen, encarnada por Tilda Swinton, é uma farsa interpretada por Moses Rosenthaler, Benicio del Toro como um prisioneiro com alma de artista que, inspirado pela musa Simone, Léa Seydoux, uma guarda prisional que não lhe devolve o afecto, é elevado a fenómeno artístico pela especulação de Julien Cadazio, um negociante de arte na figura de Adrien Brody.

Revisions to a Manifesto, claramente inspirado no Maio de 68, é da autoria de Lucinda Krementz, Frances McDormand, uma escritora solitária que, apesar de insistir na "neutralidade jornalística", não evita envolver-se romanticamente com o jovem e idealista Zeffirelli, o líder da Revolução do Xadrez encarnado por Timothée Chalamet.

The Private Dining Room of the Police Commissioner é o artigo da autoria de Roebuck Wright, excelente Jeffrey Wright a dar vida própria a uma figura inspirada no extraordinário James Baldwin, que se vê envolvido no rapto do filho do comissário da polícia, Mathieu Amalric, cujo desfecho dependerá das façanhas culinárias do famoso chef da polícia, o tenente Nescaffier, um papel de Stephen Park.

No final, os jornalistas juntam-se para uma última despedida de Arthur Howitzer Jr. ao escreverem o seu obituário.

Este elenco impressionante conta ainda com nomes como Elisabeth Moss, Jason Schwartzman (também autor da história original, na companhia de Anderson, Roman Coppola e Hugo Guiness), Henry Winkler, Bob Balaban, Christoph Waltz, Edward Norton, Willem Dafoe, Saoirse Ronan ou Angelica Huston, no papel da narradora. À primeira vista, um desperdício de bons actores em papéis quase inexistentes, mas a verdade é que a lógica narrativa impede que as personagens, mesmo as principais, sejam mais que apontamentos nos meticulosos quadros de Anderson. É verdade que os temas são reconhecíveis nas várias vinhetas. Em The Concrete Masterpiece brinca-se, por exemplo, com a especulação artística, e até com a própria natureza da arte. Revisions to a Manifesto explora a solidão de se ser escritor, bem como o saber melancólico adquirido com o benefício de uma vida vivida. Se o pathos habitual que eleva as obras de Wes Anderson além da curiosidade estética está mais disfarçado nestes dois contos, é em The Private Dining Room of the Police Commissioner, depois de uma alucinante aventura, que se deixa revelar um pouco mais, curiosamente num epílogo que Roebuck Wright tinha decidido cortar do seu texto, mas que Arthur recupera quase literalmente do cesto do lixo: o sentimento de alienação de se ser um estranho numa terra estranha, mais uma vez a constante da melancolia a pontuar este universo nostálgico e fantasioso.

Mesmo correndo o risco de ficar emocionalmente ao largo de Crónicas de França, é impossível resistir ao charme do seu estilo. Certamente que, como um bom e meticuloso álbum musical ganha vida conforme é tocado repetidamente, este filme se abrirá e revelará com repetidas visualizações. Porque a atenção ao detalhe é laboriosa, com narrativas a conterem narrativas dentro de si mesmas (incluindo desvios e apartes em que, por sua vez, somos brindados a alturas tantas com a adaptação teatral do que nos é narrado, ou até com uma versão dos acontecimentos em animação tradicional, momento em que as personagens parecem adquirir a sua real forma e habitar finalmente o verdadeiro universo construído pelo realizador); com uma deslumbrante fotografia de Robert Yeoman, utilizando judiciosas, mas nem sempre reveladoras, transições entre o preto-e-branco e cores vivas e garridas; com uma discreta transição de formato de imagem, entre o prevalente 4:3 e o ocasional panorâmico; e, como sempre, com uma charmosa banda sonora da autoria de Alexandre Desplat e uma eclética selecção de canções de travo gaulês.

Estamos, assim, perante uma obra intensamente fiel ao espírito do seu autor, embrenhado no seu universo visual e sonoro, bem como na sua linguagem e ritmos muito próprios. De tal forma que não conquistará novos públicos e poderá assoberbar mesmo os seus seguidores mais empedernidos. Mas, dada a riqueza de Crónicas de França, é perfeitamente compreensível este impacto inicial, com a certeza absoluta que o tempo e as subsequentes visitas a Ennui-sur-Blasé limarão as arestas mais pontiagudas, trarão um sentimento de maior familiaridade e solidificarão uma relação mais significativa com o espectador que por aqui se volte a aventurar.