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O longo calvário de Scorcese

O longo calvário de Scorcese

Este texto foi publicado originalmente na Take Cinema Magazine dia 21 de Janeiro de 2017 com o título Silêncio e pode ser lido na íntegra aqui.

 

Silêncio é um filme muito pessoal de Martin Scorcese, projeto antigo finalmente concretizado, onde o conceituado realizador, vinte e oito anos depois de A Última Tentação de Cristo, explora a sua própria devoção católica abordando novamente temas como a fé, o sacrifício e o sentido de missão centrando-se num personagem principal em conflito consigo próprio, com o seu próprio dever, e com as dúvidas que o atormentam na escolha do caminho correto para trilhar. Conta com Andrew Garfield, Adam Driver e Liam Neeson nos principais papéis e, colaborando novamente com Jay Cocks na escrita, Scorcese tem o seu primeiro crédito de argumentista desde Casino em 1995, naquela que é uma adaptação do livro com o mesmo título escrito em 1966 por Shûsaku Endô.

Silêncio teve uma adaptação prévia ao cinema, no filme de 1971 realizado por Masahiro Shinoda e serviu de inspiração a Os Olhos da Ásia, filme português de 1996 realizado por João Mário Grilo. O sacerdote jesuíta Alessandro Valignano, interpretado por Ciarán Hinds, recebe notícias em Macau que o padre português Cristóvão Ferreira, Liam Neeson, em missão de difusão do cristianismo no Japão, renunciou à sua fé depois de ser torturado. Os discípulos de Ferreira, o padre Sebastião Rodrigues, Andrew Garfield, e o padre Francisco Garupe, Adam Driver, não acreditando que cometeria tal apostasia, resolvem partir à sua procura numa altura em que o cristianismo foi proibido no Japão e os seus praticantes são perseguidos, torturados e mortos.

Em Silêncio Scorcese encena o Japão  do século dezassete como uma espécie de purgatório terreno onde aqueles que escolhem o cristianismo como a sua salvação se vêm obrigados a uma vida dissimulada, em constante encobrimento das suas crenças. O nevoeiro que trespassa insistentemente as lindíssimas paisagens, magistralmente compostas pelo realizador, funciona aqui literalmente como uma expressão do encobrimento espiritual a que se vêm obrigados os aldeões que Ferreira e Garupe encontram assim que chegam à terra onde a sua religião foi considerada anátema. A sua sede por redenção parece vindicar a missão dos dois padres que urgentemente colocam a procura do seu mentor em pausa para saciar os desesperados seguidores. Mas na ressaca das torturas do inquisidor japonês Inoue Masashige, interpretado por Issey Ogata, começam a formar-se dúvidas no espírito de Ferreira, numa interpretação inesperadamente emocional e sofredora de Garfield. Garupe, na pele de Driver, é prático e impaciente, mas a narrativa depressa o coloca de lado. Este é um calvário que sofremos na companhia de Ferreira que, enquadrado nos seus ensinamentos Jesuítas, se começa a ver no papel de Jesus, a sua compaixão pelo próximo suprimindo os preceitos da religião. Em nome de quem morrem os japoneses que decidiram acreditar num Deus católico? Para que vale tamanho sofrimento? Um símbolo vale mais que uma vida? E porque é que na hora de maior agonia Deus responde aos apelos dos seus súbditos apenas com um perturbante silêncio?

Garfield é convincente tanto na luta interna de Ferreira, como na defesa externa das suas crenças, nos diálogos com Inoue onde revela de forma convicta a sua arrogância quando afirma que a cristandade deve ser propagada em detrimento das restantes religiões porque é a única Verdade. Inoue realça as diferenças culturais e religiosas entre os dois povos, sugerindo mesmo que podiam coexistir sem se imporem um ao outro, mas nunca justifica aceitavelmente os atos de violência perpetrados em nome da intolerância perante a irredutibilidade dos padres em converter o seu povo. Depois de tantos anos a tentar concretizar o projeto Scorcese acaba por estrear Silêncio numa altura em que as liberdades de escolha e de expressão enfrentam novos desafios, bem como a tolerância e aceitação de outras crenças que não as nossas. E é também de liberdade que aqui se fala. Independentemente dos dogmas religiosos, políticos ou sociais, um dos mais fundamentais direitos humanos é a liberdade de escolha no que respeita às crenças. Este não deve ser um privilégio de alguns, mas sim um direito de todos. Mesmo dos fracos e cobardes. O que nos traz à personagem mais trágica de Silêncio: Kichijiro interpretado por Yôsuke Kubozuka. Kichijiro renunciou a religião por cobardia, mas perdeu a família no processo. Apesar disso mantém a sua fé e anseia por redenção só que não consegue escapar à dura realidade que o rodeia e quando chega a hora volta a pisar o fumi-e, artefacto simbólico das convicções sagradas do cristianismo, no ritual onde os perseguidores obrigavam os cristãos a renunciarem. Além disso colabora com os japoneses e a sua traição parece arrumar a questão do seu carácter. Mas Kichijiro volta sempre para perto de Ferreira procurando absolvição. Ao fim e ao cabo todos são filhos de Deus e todos merecem o seu perdão, mesmo que o padre comece a vacilar na sua compaixão.

Scorcese ilustra com composições de rara beleza atos hediondos de tortura através de planos intencionalmente contidos e sóbrios. Este é um filme contemplativo e de ação dramática interior. Dessa forma o uso do grande plano é fundamental no retrato do sofrimento das personagens. A utilização da música é esparsa e tão subtil que se torna impercetível e através do uso minimalista e cirúrgico de narração em off, praticamente incontornável na adaptação de um romance com esta complexidade, ajuda a ilustrar o monólogo interior de Ferreira que, na hora decisiva justifica perante si próprio a sua escolha através de um ato de fé puramente humano, tão surpreendente como ambíguo, apesar da sua representação aparentemente literal. Apesar da crença religiosa de Scorcese o retrato, tanto dos padres portugueses como dos japoneses antagonistas, é equilibrado demonstrando virtudes e defeitos de parte a parte. Apenas a sua dedicatória no final denuncia um ponto de vista mais vincado que ainda assim não invalida a justeza do tratamento dos seus protagonistas.

Silêncio é uma experiência interior e sensorial desafiando o espetador a confrontar-se com os dilemas que convoca, independentemente das suas convicções. Questiona o papel da religião, da fé e do sacrifício deixando claro que este é um processo doloroso através do qual o Homem é capaz do sublime e do horrífico em igual medida.

Uma obra-prima.

 

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