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O oeste operático de Sergio Leone

O oeste operático de Sergio Leone

No próximo episódio de Universos Paralelos, um programa da autoria de António Araújo (Segundo Take), José Carlos Maltez (A Janela Encantada) e Tomás Agostinho (Imaginauta), que podem encontrar em www.segundotake.com/podcast/2018/2/18/episodio121, viajamos pelo oeste operático de Sergio Leone.

Se numa paisagem árida e poeirenta, evocativa do velho Oeste, vemos um pistoleiro de rosto encardido pela sujidade, cigarro ao canto da boca e um olhar impávido que enche o ecrã, que com a música de Ennio Morricone cria uma tensão exageradamente lenta, temos intuitivamente a ideia de estarmos a ver um western de Sergio Leone.

Sergio Leone é um nome que, com razão, todos associamos ao chamado western spaghetti, género com que atingiu notoriedade internacional, a ponto de hoje ser o realizador que mais facilmente o identifica. Mas não se pense que foi Leone quem criou o spaghetti, um dos muitos géneros que resultaram da presença norte-americana na Itália do pós-guerra, a qual trouxe não só soldados, mas toda uma cultura pop, onde não faltou o cinema.

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Tudo começou no apelidado «Hollywood no Tibre», período dos anos 50 e 60 durante o qual as majors norte-americanas perceberam que lhes ficava bem mais em conta filmar em Itália, usando a qualidade dos estúdios da Cinecittà, técnicos e actores secundários italianos e cenários naturais que se prestavam a épicos dramas históricos. Esta fase teve início no sucesso estrondoso de Quo Vadis? (1951), de Mervyn LeRoy — que sedimentou o então popular sword and sandal —, e passou por filmes de outros géneros, como o célebre Férias em Roma (Roman Holiday, 1953) de William Wyler, filme de estreia de Audrey Hepburn.

O resultado foi não só a formação de técnicos e realizadores autóctones, que assim tinham contacto com o mais avançado material e escola norte-americana, como também criar no público uma predisposição para o cinema de género de Hollywood, do citado sword and sandal (que na Itália se chamou peplum) ao mais americano dos géneros, o western.

É sintomático vermos que Sergio Leone — nascido em Roma, em 1929, no seio de uma família ligada ao cinema, e entrado na Cinecittà como argumentista —, se estreou na realização num peplum, O Colosso de Rodes (Il colosso di Rodi, 1961), depois de ter completado Os Últimos Dias de Pompeia (Gli ultimi giorni di Pompei, 1959), por doença do realizador Mario Bonnard, e de ter trabalhado como assistente de realização de filmes como o citado Quo Vadis?, e o célebre Ben-Hur (1959), de William Wyler.

É nesta vaga que surge o primeiro eurowestern (ainda com capital norte-americano). Tratou-se de O Sheriff e a Loira (The Sheriff of Fractured Jaw, 1958), de Raoul Walsh — e onde a loira era a escultural Jane Mansfield —, que foi logo seguido de outros filmes parecidos, dando o molde ao filão que seria explorado a partir de Itália, e nesse país chamado western all'italiana. A ênfase era na paródia ao western clássico, tendo como modelo os filmes de Bob Hope. Mas tudo mudaria em 1964 com a estreia de Por um Punhado de Dólares, o primeiro western de Sergio Leone.

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Baseado, sem o assumir, em Yojimbo, o Invencível (Yôjinbô, 1961), de Akira Kurosawa, o primeiro filme da chamada trilogia dos dólares, protagonizada pelo então quase desconhecido Clint Eastwood, funcionaria como que um refundador do género, levando-se a sério como cinema artístico, contrastando com as produções jocosas de baixo custo a que os eurowesterns se votavam até aí. Nele, Leone definia tudo o que marcaria o seu cinema daí em diante: o anti-herói de poucas palavras, numa ética muito própria e amoral; uma violência não vista nos westerns clássicos de Hollywood; um subtil comentário político e/ou social; o uso do grotesco na definição de personagens; e acima de tudo um jeito operático, lento, marcado pela grandeza da paisagem (filmada na região de Almería em Espanha) e a intensidade de close-ups extremos, onde a carismática música de Ennio Morricone pontua os momentos de tensão e a evolução narrativa.

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Seguiram-se Por mais alguns Dólares (1965) e O Bom, o Mau e o Vilão (1966), com Clint Eastwood a contracenar com os norte-americanos Lee Van Cleef, Eli Wallach, e com os europeus Gian Maria Volontè e Klaus Kinski. Com estes filmes, Leone mostrava ser um caso à parte no domínio do western feito na Europa, na qual se viriam a produzir mais de 600 obras do género, por nomes como Sergio Corbucci, Sergio Sollima, Damiano Damiani, Giulio Petroni, Duccio Tessari, Enzo Barboni e Antonio Margheriti. Se o público pedia comédia, acção rápida e muitos tiroteios, Leone respondia com filmes cada vez mais lentos e longos, onde estética e ideias se impunham a acção e aventura. Para sempre, ficava a imagem de Clint Eastwood, com o seu pistoleiro ensimesmado, de gestos precisos, aliando cinismo frio e finíssimo humor negro, em três filmes que definem uma forma diferente de se pensar o western.

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O sucesso destes filmes no mercado norte-americano foi tal que Leone foi convidado a atravessar o Atlântico. Com passagens pelo México e pelo Monument Valley, nos Estados Unidos, surgia a sua segunda trilogia, começada com o ainda mais operático Aconteceu no Oeste (1968), onde Leone trabalhava uma história de Dario Argento e Bernardo Bertolucci, com estrelas como Henry Fonda, Charles Bronson, Claudia Cardinale e Jason Robards, continuada com Aguenta-te, Canalha! (1971) (que esteve para se chamar Era uma vez na Revolução), com Rod Steiger e James Coburn, e terminada mais tarde, já fora do western, no filme de gangsters Era uma vez na América (Onde upon a Time in America, 1984), com Robert De Niro e James Woods.

Nesta altura, Sergio Leone já passara à produção de comédias ligeiras ao gosto do cinema comercial italiano. Foi, ainda assim, pelo western, que Leone começou, com dois veículos para a então estrela em ascensão Terence Hill (nome artístico do actor italiano Mario Girotti, que ficaria conhecido pela série cómica Trinitá e pela sua parceria com Bud Spencer). Sempre com música de Ennio Morricone, eles foram O Meu Nome é Ninguém (1973), de Tonino Valerii, que trazia de volta Henry Fonda, num filme que alia o lado cabotino de Hill à estética de Leone (que dirigiu algumas sequências), e Chamavam-lhe Génio (1975), de Damiano Damiani, com Hill num personagem parecido ao anterior, já mais longe da estética de Leone.

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Sergio Leone morreu em 1989, com apenas 60 anos, vítima de problemas cardíacos, pouco depois de ter presidido ao júri da quadragésima quinta edição do Festival de Veneza e quando trabalhava ainda na produção de um filme há muito planeado, que se chamaria Leninegrado: os 900 Dias. Para trás, mais que uma obra curta, deixou um imaginário único e inesquecível, que marca todos os que alguma vez espreitaram o western feito em Itália. Viva, continua a sua influência, começada nas imitações italianas, e no revisionismo violento e niilístico de Sam Peckinpah, e continuada no revivalismo saudosista de Quentin Tarantino. A não esquecer, claro, está boa parte da carreira do próprio Clint Eastwood, que dedicou a Sergio Leone o seu magnum opus Imperdoável (Unforgivable, 1992).

José Carlos Maltez, Outubro 2017

 

Fontes primárias

Filmografia

  • Por um Punhado de Dólares (Per un pugno di dollari, 1964)
  • Por mais alguns Dólares (Per qualche dollaro in più, 1965)
  • O Bom, o Mau e o Vilão (Il buono, il brutto, il cattivo, 1966)
  • Aconteceu no Oeste (C'era una volta il West, 1968)
  • Aguenta-te, Canalha! (Giù la testa, 1971)
  • Meu Nome é Ninguém (Il mio nome è Nessuno, Tonino Valerii, 1973)
  • Chamavam-lhe Génio (Un genio, due compari, un pollo, Damiano Damiani, 1975)

 

Fontes secundárias

Bibliografia

  • Bondanella, P (2009) A History of Italian Cinema. London: Bloomsbury Academic.
  • Celli, C., Cottino-Jones, M. (2007) A New Guide to Italian Cinema. New York, NY: Palgrave McMillan.
  • Frayling, C. (2000) Sergio Leone: Something to Do with Death. London: Faber.

Documentários

 

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