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Era Uma Vez em… Hollywood

Era Uma Vez em… Hollywood

Em teoria, Quentin Tarantino representa um oxímoro. Um apropriador e reciclador de variadas formas de cultura popular, especialmente de natureza cinéfila, no entanto assinando obras com uma identidade inconfundível e vincada do próprio autor — e não foi por falta de tentativas de emular o seu estilo. Quando anunciou a intenção de filmar uma história sobre Hollywood tendo por base os infames assassinatos de Agosto de 1969 perpetrados pelos acólitos de Charles Manson, formou-se a expectativa de como estes acontecimentos seriam retratados no universo Tarantino e encaixariam na estética a que nos habituou. A primeira boa notícia perante Era Uma Vez em… Hollywood é que o foco é desviado desta antecipação e apontado às personagens de Leonardo DiCaprio e Brad Pitt — o actor Rick Dalton e o seu duplo e amigo Cliff Booth, respectivamente —, isto apesar da partilha do cartaz com Margot Robbie como Sharon Tate. O escritor e realizador não está interessado nos detalhes e motivações da chamada Família — como deveria ser imediatamente óbvio —, nem em produzir uma reconstituição dos factos. Aliás, nem sequer invoca o nome completo do cabecilha do grupo, tendo este texto feito mais do que o filme para o perpetuar. O que Tarantino encontrou nestas macabras ocorrências reais foi um paralelismo entre a procura (falhada) de fama de Manson — hipócrita perante os ensinamentos que impingia, mas não muito diferente neste particular aspecto de qualquer outra história de ambição em Hollywood — e o fechar da “era dourada” de Hollywood, tal como representadas pela evanescente estrela de Rick e parcas oportunidades de trabalho de Cliff.

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Era Uma Vez em… Hollywood irá seguramente desconcertar alguns dos mais ferrenhos adeptos de Quentin Tarantino. Os ingredientes estão todos lá: a banda sonora — constante camada auditiva que não só serve como tecido conjuntivo da experiência cultural dos habitantes deste universo como contribui para a qualidade encantatória e de conto-de-fadas —, o ritmo paciente e deliberado, os longos diálogos — cuja relevância nem sempre é imediatamente  perceptível —, as inúmeras referências — tanto a filmes e séries da época (umas reais, outras invenções da narrativa) como a títulos do próprio realizador. A novidade é a melancolia que trespassa o filme e as suas personagens. Rick considera que a sua carreira está acabada, depois de ter desistido de uma série televisiva de sucesso numa tentativa falhada de vingar no mundo da sétima-arte. O produtor Marvin Schwarz — numa curta participação de Al Pacino — persegue Rick para filmar western spaghettis em Itália, o que ainda o deprime mais. Leonardo DiCaprio polvilha a sua interpretação de subtilezas que sublinham este estado de espírito, como o flutuante gaguejar, por exemplo. Num paralelismo com a relação Burt Reynolds / Hal Needham, Cliff, numa interpretação de Brad Pitt que transpira estilo sem qualquer esforço aparente, é mais do que duplo de Rick. É motorista, amigo e confidente. No entanto, o passado — referência à morte de Natalie Wood (desta feita, menção mais oblíqua) — deu-lhe má fama, reforçada por detalhes que levantam o véu à violência latente da personagem como o hilariante momento em que confronta Bruce Lee (Mike Moh) — não muito lisonjeiro para o desaparecido ícone — ou a sua visita ao rancho Spahn onde conhece alguns membros da Família. A narrativa episódica e esparsa centra-se no duo — já falaremos de Margot Robbie —, sendo enriquecida por um conjunto impressionante de participações especiais: Damian Lewis (Steve McQueen), Bruce Dern (George Spahn), Timothy Olyphant (James Stacy), Dakota Fanning (Squeaky Fromme), Emile Hirsch (Jay Sebring), só para mencionar alguns dos nomes mais sonantes do restante elenco.

A escritora norte-americana Joan Didion escreveu no seu livro de ensaios The White Album (numa tradução livre): “Muitas pessoas que eu conheço em Los Angeles acreditam que os Anos Sessenta acabaram abruptamente a 9 de Agosto de 1969.” Didion tinha o dedo no pulso do ambiente que se viveu após os assassinatos que, segundo a própria, serviram como um acordar violento do sonho cor-de-rosa que se viveu na década do movimento hippie. É este o papel da Família na narrativa de Era Uma Vez em… Hollywood. O de agente da mudança. Incluindo o choque perante a nova vaga americana que se vislumbrava e que viria para acabar com o “sistema de estúdio”.  O sistema onde Rick e Cliff tinham feito vida e carreira. Ao lamentar o seu desaparecimento, Tarantino, ao seu nono título (pela contabilidade do próprio, que considera os dois volumes de Kill Bill – A Vingança como um filme só), produz o seu filme mais conservador. Não só pelo anseio por uma realidade desaparecida (se bem que tal como o realizador a idealiza), mas também pelo atenuar do cinismo (e sadismo, digamo-lo sem preconceitos) de títulos anteriores. Onde antes a tensão desembocava em momentos de violência, aqui é neutralizada e mitigada — o que pode contribuir também para o defraudar das expectativas mencionado anteriormente. No entanto, os mais atentos notarão que o autor continua fascinado com o poder da narrativa e com o esbater das fronteiras entre a ficção e a realidade. Vejam-se as sequências em que o trabalho de Rick “dentro do filme“ são encenadas como sendo o texto da própria película (que, já agora, é também celebrada em conjunto com o singelo e ritualista procedimento de ver um filme) e em que a ilusão apenas se esvanece quando o próprio se esquece das falas. É Trudi, uma pequena actriz de oito anos interpretada por Julia Butters, ou seja, sangue novo na indústria, quem motivará Ricky, que redescobre a sua veia interpretativa a par da sua relevância.

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Além da melancolia, vislumbra-se mais ponderação e emoção no cinema de Tarantino, nomeadamente no retrato de Sharon Tate, resgatada do sempiterno papel de vítima a que foi remetida e, através de Margot Robbie, representada como uma pessoa de carne-e-osso, cheia de energia, vivacidade e sonhos. Confrontado em Cannes com a pergunta de um jornalista sobre os seus parcos diálogos, o escritor e realizador escusou-se a considerar sequer a premissa da mesma. A verdade é que Tate é, aqui, uma cifra. É a mulher do famoso Roman Polanski, realizador em alta à data, a vizinha que mora do outro lado do portão que separa os que atingiram o “sonho” daqueles que o vêem por um canudo. É a estrela do futuro, a nova realidade à espreita ao virar da esquina. Num momento de pura celebração, dá-se outro exemplo de esbatimento das fronteiras entre ficção e realidade: Robbie celebra Tate ao entrar numa sala de cinema e assistir à projecção de Um perigo em cada curva (The Wrecking Crew, Phil Karlson, 1968), um filme que a própria protagoniza. E o que vemos no grande-ecrã é a real Sharon Tate, ao invés de uma recriação com Robbie — como podemos assistir, por exemplo, numa fantasia de A Grande Evasão (The Great Escape, John Sturges, 1963), se este filme tivesse sido interpretado por Rick Dalton. 

É na recta final — reminescente de outra obra de Quentin Tarantino — que a violência latente aparece finalmente num momento catártico, bem ao estilo do seu realizador, voltando a colocar em causa (questionar?) o seu papel tanto no grande como no pequeno-ecrã. Referenciando um excerto que se pode ouvir no filme nomeado para o Óscar de Melhor Documentário de Longa-Metragem referente à produção de 1973 Manson (Robert Hendrickson, Laurence Merrick), elementos da Família culpabilizam a violência na televisão como a origem para a violência no mundo real, fechando o ciclo de esbatimento de fronteiras entre ficção e realidade. Falamos de uma época em que havia hora marcada para ver televisão, e esta servia um papel de experiência comunitária, transversal aos vários estratos sociais. Nesse sentido, as potenciais vítimas eram tanto alvos como fonte de inspiração, inconsistência que Tarantino não deixa passar incólume e cujas consequências reclama para si como forma de terapia colectiva. Apesar da remissão do papel da família Manson para segundo plano, o conhecimento da sua história e dos assassinatos cometidos por alguns dos seus membros é fundamental para a relação de cada espectador com o desfecho de Era Uma Vez em… Hollywood, ainda que este esteja mais interessado na elegia à terra dos sonhos do seu título: era uma vez… uma Hollywood em que passado e presente podiam conviver e beber um copo amigavelmente.

O episódio do podcast Segundo Take dedicado a Era Uma Vez em… Hollywood pode ser ouvido aqui.

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