Antebellum - A Escolhida
A pesada herança da escravidão está embutida no ADN dos EUA, persistentemente presente num sistémico desequilíbrio racial que de tempos a tempos aflora, expondo uma nunca curada ferida aberta na história daquele país. Nos anos mais recentes, inspirado pelo sucesso de Foge (Get Out, Jordan Peele, 2017), o cinema norte-americano tem encontrado no terror um veículo para expor e confrontar realidades difíceis através das convenções do género, e que melhor forma de comentar o estado das coisas que o terror e a ficção cientifica? Sob a alçada de Raymond Mansfield e Sean McKittrick, produtores daquele filme charneira, aparece em 2020 Antebellum - A Escolhida, a estreia da dupla Gerard Bush e Christopher Renz na realização de uma longa-metragem, protagonizada pela também estreante Janelle Monáe. Antebellum propõe um mistério de terror que lida de frente com a questão racial americana, entretanto inflamada nos meses em que o lançamento do filme foi protelado por causa da pandemia mundial.
A sinopse oficial de Antebellum revela que este “Narra a história da bem-sucedida autora Veronica Henley (Monáe) que se vê presa a uma realidade horrível da qual precisa descobrir o mistério alucinante antes que seja tarde demais.” Com o mote lançado por uma citação de William Faulkner, este é um exercício de fusão entre o passado e o presente, não só pela permanência dos fantasmas de outrora como pela natureza cíclica e recorrente da história. Do ponto de vista da relevância para os tempos que correm, Antebellum não podia ser mais afiado, endereçando a perpetuação dos mecanismos de defesa herdados pela comunidade negra da sua condição subserviente original, nomeadamente o conformismo e o silêncio, incitando a comunidade a erguer a sua voz na exposição das desigualdades e à acção para a mudança. Que isto aconteça pela mão de uma personagem feminina, ainda o torna mais relevante.
Que a mensagem seja tão romba como um machado mal afiado nem sequer é o problema de Antebellum. Não se vivem tempos condizentes com subtilezas, e a dupla de realizadores assume esta obra como um manifesto de intervenção social com uma perspectiva muito vincada — nada contra da minha parte, muito embora haverá quem possa argumentar que a catarse de retribuição a que se assiste na recta final poderá servir mal a sua causa, correndo o risco de ser acusada de reacionária e inflamatória. A questão que se levanta é que não há aqui qualquer mistério para ser resolvido. Os únicos enganados são os espectadores, a quem os autores pregam uma partida com as suas opções narrativas reminescentes do excelente e mal-amado A Vila, filme de 2004 de M. Night Shyamalan, muito mais hábil na revelação do seu truque. No entanto, as personagens em Antebellum conhecem a sua condição, reservando as surpresas do entrelaçar de narrativas temporais para este lado da tela. Não revelando os seus segredos, posso adiantar no entanto que, perante as antevisões promocionais — que só vi depois de ver o filme —, prevejo muitas reações desiludidas perante o esbanjar das fantásticas possibilidades sugeridas.
Antebellum não necessitava ser subtil. E nem sequer é censurável o seu impulso panfletário e zangado. O que é lamentável é a promessa não cumprida de um mistério de terror gótico para servir de robusto sustento às suas temáticas.