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MOTELX 2021

MOTELX 2021

Apesar da menor disponibilidade este ano, e por conseguinte de uma cobertura menos aturada do certame, ainda assim consegui assistir a algumas sessões do 15ª edição do MOTELX — o Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa. Não só quero partilhar convosco alguns títulos, para os quais não consegui desta vez escrever uma análise individual aturada, como gostaria de celebrar este regresso às salas de cinema, neste caso à extraordinária sala Manoel de Oliveira e à desengonçada, no entanto carismática, Sala 3 do Cinema São Jorge. É um lugar-comum (porque é verdade), mas não há nada como ver um filme em sala, especialmente quando esta nos oferece boas condições de som e imagem (e, ainda para mais, agora que, por causa da pandemia, temos sempre cadeiras livres ao nosso lado). Se já não se lembram da última vez que viram um filme fora de casa, recomendo vivamente que redescubram o fascínio de uma tela gigante numa sala escura, seja em festival ou circuito comercial.

 Vamos então aos filmes.

No capítulo das curiosidades, destaco The Deep House, filme da dupla francesa Alexandre Bustillo e Julien Maury que se segue à pouco feliz experiência na América ao leme de Leatherface: A Origem do Mal, mais uma prequela desnecessária da saga Massacre no Texas. The Deep House apresenta um conceito apelativo: uma casa submersa no fundo de um lago, destino de um casal à procura de imagens que possam fazer aumentar a audiência do seu canal do YouTube sobre locais abandonados, que pode ou não estar assombrada. Excelente na construção do ambiente e da tensão nas cenas subaquáticas — para que tenham uma ideia, depois do mergulho dos protagonistas, o filme não volta à superfície para respirar, tornando-o impróprio para os mais claustrofóbicos —, desmorona-se no entanto quando chega a hora dos sustos e da conclusão.

Uma das atracções do MOTELX é a sua secção documental, e este ano não foi excepção. Alien on Stage, que contou com a presença de uma das suas realizadoras, Danielle Kummer, a assistir ao seu próprio filme pela primeira vez numa sala com público, é uma improvável história de amor às artes performativas protagonizada por um grupo de teatro amador constituído inteiramente por trabalhadores de uma empresa rodoviária de Dorset, no Reino Unido, que se junta para recriar o clássico filme de Ridley Scott, Alien - O 8º Passageiro no palco. O resultado é um relato enternecedor e hilariante que provocou gargalhadas genuínas e salvas de palmas expontâneas na única e memorável exibição do festival, que certamente ficará na memória de quem teve o prazer de estar presente. 

Nota ainda para a experiência grotesca e macabra de Mad Dog, projecto em stop-motion de  Phil Tippet que levou mais de 30 anos a concretizar, e que revela um uma faceta onírica e sombria que não se conhecia a este mago norte-americano dos efeitos especiais.

 


Falemos então daquelas que foram as minhas melhores experiências do festival.

Em jeito de ante-estreia nacional, visto que estreou nas nossas salas passados dois dias, tivemos a oportunidade de ver A Lenda do Cavaleiro Verde, realização de David Lowery que nos chegou com o burburinho pela crítica internacional de ser um filme especial. Esta revisão fantástica do romance em verso Sir Gawain e o Cavaleiro Verde, mais uma das muitas lendas arturianas, tem como protagonista o excelente Dev Patel, secundado por ótimas prestações de Joel Edgerton,  Sarita Choudhur, Barry Keoghan, Sean Harris, como um envelhecido Rei Artur, e, especialmente, Alicia Vikander, sublime num papel duplo em que interpreta duas faces distintas de uma mesma moeda, por assim dizer. A Lenda do Cavaleiro Verde é um filme sumptuoso, de grande beleza visual, desafiante para quem, como eu, não está muito familiarizado com o contexto arturiano. O ritmo paciente e deliberado denotam uma predileção de Lowery por ambiente e simbolismo, em detrimento de narrativa e trama, e, com a ajuda da fotografia impressionista de Andrew Droz Palermo e a música de Daniel Hart que mescla sem esforço modernismo com sonoridades medievais, envolve-nos numa demanda que, desculpem-me o lugar-comum, é tanto uma provação física externa como um despertar de consciência interna, o desabrochar da idade adulta, o alcançar da maturidade e o consolidar do carácter, tudo isto embrulhado num desavergonhado assomo de fantasia que muito se saúda. David Lowery continua a surpreender com uma filmografia em que alterna inusitados projectos pessoais de sabor independente com discretos filmes para a Disney, para a qual realizou em 2016 A Lenda do Dragão e está neste momento a rodar mais uma versão do rapaz que nunca cresce, desta vez intitulada Peter Pan & Wendy

Uma das grandes surpresas da programação do MOTELX deste ano foi a oportunidade de ver The Beta Test, o mais recente filme de Jim Cummings, autor que muito aprecio e do qual já falei aqui no episódio 262. Esta terceira obra, depois do desconforto humorístico-dramático de Thunder Road e da apropriação dos filmes de lobisomens de The Wolf of Snow Hollow, resultou de uma parceria com PJ McCabe, que aparece como o co-autor do argumento, co-realizador, e tem ainda um papel secundário de relevo num elenco que volta a ser encabeçado por Cummings. A maior virtude de The Beta Test é também o seu maior defeito: a já batida persona maníaca dos protagonistas dos seus filmes, um homem branco e privilegiado, à beira de um ataque de nervos, no limiar de violento, volta a estar aqui presente. Desta vez o protagonista é Jordan, um agente de Hollywood que se vê envolvido numa estranha rede de encontros sexuais anónimos que entra numa espiral de obsessão investigativa, e se desculparmos o regresso ao registo a que já nos habituou, Cummings volta a construir um estudo de personagem enredado na fórmula de filme de terror em que um dos ingredientes é — sem querer estragar o filme a quem não viu e está interessado em fazê-lo —uma série de crimes de paixão na sequência de infidelidades conjugais. Neste filme cínico e ácido, a mira é também apontada à cultura corporativa de Hollywood, não deixando de piscar o olho ao movimento #metoo, mais mais interessado ainda nos egos e nas desequilibradas dinâmicas de poder e abuso (de natureza não obrigatoriamente sexual) na capital americana do entretenimento. Felizmente, a habilidade da escrita, apesar de pouco subtil, consegue ainda encaixar umas farpas ao papel actual das redes sociais, ao nosso abandono voluntário da privacidade no maravilhoso mundo em rede, ao periclitante equilíbrio da vida conjugal e, como não podia deixar de ser, ao ego masculino e às vulnerabilidades da natureza humana. Actualmente a fazer o circuito dos festivais, resta saber se The Beta Test estreará por cá em circuito comercial ou se terá o mesmo destino dos filmes anteriores do seu autor.

 

Outro filme que dividiu opiniões foi In The Earth, o mais recente título do sempre fascinante Ben Wheatley. In The Earth foi produzido em contexto de pandemia e insere-se numa corrente de filmes recentes denominada de eco-terror, incluindo títulos que passaram pelo MOTELX, como o curioso filme galês The Feast, de Lee Haven Jones, que viria a vencer o prémio para a Melhor Longa de Terror Europeia / Méliès d’argent 2021, ou Gaia, filme sul-africano realizado por Jaco Bouwer, que infelizmente não tive oportunidade de ver. Ben Wheatley não é estranho ao folk horror — veja-se Uma Lista a Abater — nem ao psicadelismo — prova número um é A Field in England —, e aqui combina esses elementos para uma história que quase se podia chamar de câmara, visto tomar lugar no seio de quatro personagens confinadas a um espaço físico, neste caso, uma floresta algures no Reino Unido. Integrando a pandemia do COVID na narrativa, acompanhamos um cientista guiado por uma guarda florestal (Joel Fry e Ellora Torchia) em busca do acampamento de Olivia, uma cientista acampada no coração da floresta interpretada por Hayley Squires envolvida em estudos que se propõem a estabelecer comunicação com a própria terra, encarada como uma entidade outrora considerada divina. Pelo caminho, depois de agredido durante a noite, o par aceita a ajuda de um ermita encarnado por Reece Shearsmith que, emprestando alguma da estranheza que se lhe conhece da saudosa série televisiva Legue of Gentleman, pode não ser propriamente a ajuda que necessitam. Talvez apanhados de surpresa pela audácia da narrativa, os mais incautos se sintam defraudados pela premissa de ficção científica polvilhada por momentos de violência gráfica de pendor humorístico e uma reta final psicadélica imprópria para quem sofra de fotossensibilidade a luzes estroboscópicas. Os restantes, apreciarão por certo esta proposta absurda, no entanto cativante, de Wheatley, não pela coerência temática de uma narrativa que estabelece uma conectividade entre o Homem (com H grande) e a terra que habita, mas sim pelo escalar da tensão com algumas reminiscências de O Projecto Blair Witch desarmadilhada pelo exagero da violência ocasional e pela trip visual e sonora da sua recta final. 

 

Para terminar, é apropriado falar do filme exibido na sessão de encerramento do festival, The Night House - Segredo Obscuro, de David Bruckner. Rebecca Hall é Beth, uma viúva recente que, ao mesmo tempo que sente uma presença na luxuosa casa do lago construída pelo casal, começa a descobrir aos poucos segredos sobre o seu marido, percebendo que este mantinha uma vida dupla que desconhecia e que pode explicar o seu violento suicídio. David Bruckner, que havia realizado segmentos dos filmes de antologia V/H/S e Southbound, bem como o filme da Netflix The Ritual, constrói aqui uma sólida narrativa de mistério com níveis de suspense bem doseados que, se uma vez ou outra resultam em susto fácil, não comete o pecado de abandonar a sua trama em busca de emoções baratas e batoteiras. The Night House leva-nos num mistério original devidamente tenso que abraça desavergonhadamente os tropos dos filmes de casas assombradas. Tudo isto, assente numa dedicada prestação de Rebecca Hall, contida na sua vulnerabilidade e solidão, no entanto assertiva na sua busca pela verdade, ponderando tanto a possibilidade de ter sido casada com um monstro como de abraçar o espectro do homem que amou de verdade. Não só The Night House tem todos os ingredientes para uma excelente carreira no circuito comercial — e volto a reforçar o impacto de ver este filme numa boa sala de cinema —, como Bruckner está neste momento em rodagem de um projecto que poderá ser o seu vai-ou-racha: o arriscado reeboot do clássico de 1987 Hellraiser: Fogo Maldito.

 Outros filmes que vi nesta edição:

  • A Glitch in the Matrix (Rodney Ascher, 2021);

  • Violation (Dusty Mancinelli e Madeleine Sims-Fewer, 2020);

  • The Feast (Lee Haven Jones, 2021);

  • The Amusement Park (George A. Romero, 1975);

E assim passou mais uma edição do MOTELX. Espero que tenham oportunidade de ver estes filmes num futuro próximo. Entretanto, para o ano, por esta altura, há mais terror para acompanhar no mítico Cinema São Jorge em Lisboa.

Crónicas de França do Liberty, Kansas Evening Sun

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MOTELX 2021: o palmarés

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