Gritos
Depois do desaparecimento de Wes Craven, e de um quarto capítulo de Gritos em alta, poderia parecer sensato colocar um ponto final nesta saga. Ao fim e ao cabo, perdemos o autor que assinou todos os títulos, e já passou mais de uma década desde Gritos 4. Além disso, o slasher parece cada vez mais um artefacto arqueológico, apesar da importância dos filmes de Craven para a manutenção dos sinais vitais do sub-género. Acontece que a realidade actual de Hollywood serviu de ecossistema perfeito para dar continuidade a Gritos. É inescapável a febre nostálgica das sequelas de legado, ou das requels, ou dos soft reboots (ou de como lhe quiserem chamar) — caso não saibam do que falo, vejam este novo Gritos e terão uma pequena workshop gratuita e bastante esclarecedora sobre o tema. Por agora, basta dizer que atribuo as culpas do fenómeno a JJ Abrams, com os seus filmes de entrada tanto no Star Trek como no Star Wars, e David Gordon Green, com a sua versão de 2017 de Halloween. Em abono da verdade, tenho que confessar que gostei destes filmes, no entanto abriram as portas para uma tendência que vai ser difícil de sacudir nos próximos tempos. O primeiro Gritos sem a participação de Wes Craven ou do argumentista Kevin Williamson, agora realizado pela dupla que nos deu Ready or Not - O Ritual, Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillett, e escrito por James Vanderbilt e Guy Busick, opta por ter como título simplesmente Scream — tal como Halloween de Gordon Green —, apesar de se posicionar claramente como uma continuação dos quatro filmes anteriores. Ou seja, quer ser ao mesmo tempo uma sequela dos filmes que acompanhamos desde os anos noventa e um reboot para uma nova geração. O seu alibi perfeito? Aproveitar-se da natureza “meta” da saga para endereçar esta mesma queixa que aqui apresento no texto da sua narrativa. O que começou por ser o trunfo dos filmes realizados por Wes Craven, ou seja, o sub-texto temático — por vezes promovido explicitamente a texto, é certo, mas sem que nunca isso se tornasse uma desculpa — aparece aqui como uma muleta para justificar a sua própria existência, com a vantagem de funcionar como inoculação de defesa às inevitáveis críticas. Do género “Ah, não podem criticar. Nós temos perfeitamente noção do que estamos a fazer e, para prová-lo, estamos a dizê-lo explicitamente pelas vozes das nossas personagens.”
Estando no domínio das sequelas de legado, não será portanto surpresa perceber que Gritos 5 (bem mais fácil do que gastar o latim a dizer Gritos 2022), irá repetir a estrutura narrativa do filme original. Tudo começa vinte e cinco anos depois de Billy e Stu terem aterrorizado Woodsboro, numa série de assassinatos no seio do grupo de amigos de Sidney Prescott. Tara está sozinha em casa, a trocar mensagens com a amiga Amber. O telefone fixo toca e a adolescente atende, sendo confrontada do outro lado da linha por um sádico que ameaça a vida de Amber e obriga Tara a responder a perguntas sobre trivia dos filmes de terror Stab — o contraponto na realidade da saga para os próprios filmes Scream, baseados nos homicídios aqui retratados. Quando Tara erra uma pergunta, Ghostface invade a casa e ataca-a, partindo-lhe a perna e esfaqueando-a repetidas vezes antes da polícia chegar ao local. Ao saber do estado crítico da irmã, Sam, há muito afastada da cidade e da família, regressa, trazendo com ela um segredo que poderá explicar o ataque. Entretanto, o grupo de amigos de Tara é ameaçado por Ghostface, obrigando ao regresso do trio de veteranos sobreviventes de ataques anteriores, Gale Weathers, Dewey e Sidney, numa tentativa de ajudarem os jovens a lidarem com a situação.
Queixas feitas na introdução, convém dizer que Gritos 5 é um slasher competente. Sim, é condescendente com a sua audiência. Sim, quer desesperadamente justificar a sua existência. Sim, é demasiado esperto para o seu próprio bem. No entanto, é notório o esforço para não manchar o legado de Wes Craven. Aliás, talvez seja por causa do extremo respeito e da reverência com que tenta recriar a estética e encenação do autor original que acabe por ser o capítulo com menos humor da saga, elemento imprescindível no sucesso do primeiro filme. Ainda assim, o novo elenco é competente, com especial destaque para o par Melissa Barrera e Jenna Ortega — as irmãs Carpenter, numa óbvia referência ao mestre do terror John, mantendo mais uma tradição da saga. São elas quem ancora emocionalmente um filme que ambiciona a ser algo mais que uma colecção de assassinatos violentos. Gritos 5 tem uma boa dose de cenas de alguma violência gráfica a polvilhar mais um mistério em formato whodunnit. Se bem que nenhuma se apresente como particularmente original, são suficientemente sangrentas para um filme mainstream desta natureza e para agradar a novos fãs do género. Para os fãs mais veteranos, temos a surpresa do regresso de Marley Shelton, como a agente Judy Hicks do quarto capítulo, agora promovida a xerife, e o esperado regresso de Gale, Dewey e Sidney, a protagonista de facto da saga. Se a participação de Neve Campbell como Sidney parece apenas cumprir o caderno de encargos, curiosamente é na relação entre Courtney Cox e David Arquette que se atingem os mais eficazes momentos emocionais, com especial destaque para a participação carregada de pathos deste último, a contracenar com a sua ex-mulher em mais uma estranha instância da vida real a fazer eco da ficção. Há mais um regresso, do qual não contarei mais aqui para não estragar a surpresa. Avanço apenas que sugere um elemento quase sobrenatural que muitos gostariam de ver nesta saga, mas que, na minha opinião pessoal, não funciona e acaba por ser um elemento desnecessário.
No final, o resultado só surpreenderá quem chegue a este filme sem nunca ter visto nenhum dos títulos que o antecederam. E não há problema nenhum com isso. Aliás, é para eles que Gritos 5 se apresenta em 2022 simplesmente como Gritos. E a minha aposta é que, tal como o original, será bem recebido por uma generosa fatia do público, especialmente por aqueles à procura de uma forma mais pura e genuína de terror, distanciando-se de alguns dos títulos recentes que parecem ter vergonha do epíteto — o chamado elevated horror, mencionado mais do que uma vez na narrativa. Desculpem-me o aparte, mas haverá designação de subgénero mais ofensiva do que esta, uma definição que parte do pressuposto que o terror “tradicional” não pode ser inteligente nem considerado alta arte? Muitos torcerão o nariz à falta de subtileza destas referências, ou estarão — tal como eu — cansados da fórmula nostálgica que serve de mote a este filme. Porém, se o resultado destes projectos fosse sempre um filme económico e pontiagudo como este na repetição das fórmulas, estaríamos muito bem servidos. E se, além disso, servir como porta de entrada para o género de terror para uma nova geração, não terá cumprido a sua função, tal como fez o original nos anos noventa?