Episódio #12 - Balanço 2015
Começo por revelar um spoiler para a minha lista de favoritos do ano: Star Wars: O Despertar da Força não está incluído nesta lista. Não porque não tenha sido um dos filmes que mais prazer me deu este ano mas porque o Star Wars está num patamar à parte para mim. Não consigo ter a objectividade necessária para o enquadrar de forma justa num balanço como este.
Feito o aviso começo por revelar quais os filmes que não estão no meu Top 2015 simplesmente porque não os vi. Cada um destes títulos tem o potencial de figurar num Top meu mas acabei por chegar ao fim do ano sem os ter conseguido ver. No capítulo das animações Inside-Out: Divertidamente, o sucesso da Pixar e As Asas do Vento, o anunciado derradeiro filme do mestre Hayao Miyazaki e do estúdio com fim anunciado Ghibli. O retorno à ficção científica e à forma comercial de Ridley Scott, Perdido em Marte e o drama de acção do anunciado realizador da sequela de Blade Runner - Perigo Iminente, Dennis Villeneuve: Sicário - Infiltrado. No panorama independente perdi o aclamado filme de terror com um conceito original Vai Seguir-te de David Robert Mitchell e Tangerine, de Sean Baker, filme que não teve estreia em Portugal e que teve ótima recepção crítica superando a curiosidade de ter sido filmado com iPhones 5, com um acessório de lentes e editado num software barato.
Uma lista é sempre subjectiva, não só porque reflete gostos e opiniões, mas também porque os seus parâmetros podem variar bastante de pessoa para pessoa. Gosto do exercício de reflectir sobre os filmes que vi e o final do ano é um milestone que se propicia a tal. Não os ordeno por ordem nenhuma especial e, com a excepção de uma pequena batota, contemplei apenas filmes que vi este ano, no cinema ou em casa, que tenham estreado, comercialmente ou em festivais, em 2015 em Portugal.
Ex-Machina
Ex Machina é a estreia na realização do novelista e argumentista Alex Garland, colaborador de Danny Boyle em A Praia (2000), 28 Dias Depois (2002) ou Missão Solar (2007), e argumentista, adaptando um romance de Kazuo Ishiguro, do criminalmente pouco visto Nunca Me Deixes, de 2010 de Mark Romanek. Neste, como em Ex Machina, assistimos a inflexões fantásticas subtis em realidades muito próximas da nossa que transforma a experiência numa reflexão verosímil sobre as temáticas apresentadas. São dois filmes ligados por questões de identidade e propósito onde as personagens se confrontam com o seu destino e o livre-arbítrio, ou a falta dele.
Ex Machina é um filme de câmara com apenas três protagonistas: Caleb, um informático que ganha um prémio na empresa onde trabalha que lhe permite conhecer Nathan, o líder inspirador e recluso dessa empresa, e com ele passar um fim-de-semana na sua casa retiro de montanha. Aí Nathan apresenta Ava, uma rapariga robot que representa uma evolução radical no que respeita à inteligência artificial a Caleb. O que começa por ser uma experiência fascinante torna-se num jogo de aparências e manipulação. Mas quem manipula quem?
Além de uma direcção muito sóbria e confiante Alex Garland consegue excelentes interpretações dos seus actores principais, Oscar Isaac, Domhnall Gleeson e especialmente a estrela em ascensão Alicia Vikander que evita clichés na sua interpretação de Ava e é decisiva na nossa compreensão e cumplicidade da relação que estabelece com Caleb.
Para quem é fã de ficção-científica, especialmente no seu lado mais cerebral, este é um filme obrigatório e, acredito eu, uma futura referência do género.
Vício Intrínseco
Ao longo da sua carreira Paul Thomas Anderson tem traçado retratos de uma América povoada de famílias disfuncionais, personagens alienados, sonhos desfeitos e reflexões muito pouco românticas sobre o passado e o inevitável arrependimento desse olhar.
Desde a figura paternal que John encontra em Sydney em Hard Eight – Passado Sangrento, passando pela família de empréstimo que Eddie descobre no círculo de cineastas de filmes pornográficos em Boogie Nights – Jogos de Prazer ou pelo nervoso e tímido Barry Egan em Punch-Drunk Love – Embriagado de Amor e pelo ambicioso Daniel Plainview em There Will Be Blood – Haverá Sangue – o que todos os personagens no centro dos filmes do Paul Thomas Anderson parecem ter em comum é a aspiração ao eternamente elusivo Sonho Americano. Seja aquele que Las Vegas promete, ou a sugestão de fama através de cinema de gosto duvidoso ou mesmo a simples possibilidade de tirar umas férias de graça através de cupões encontrados em embalagens de pudins. Todas estas ambições se emaranham no novelo da complexa realidade Americana: tudo tem um custo.
É em linha com este pensamento que aparece a adaptação de Vício Intrínseco de Thomas Pynchon. Larry “Doc” Sportello é a personagem central de uma trama neo-noir, que o parece ultrapassar a cada esquina e onde o dealbar de uma nova década, visto que o história se situa em 1970, parece trazer um abrir de olhos do sonho da paz e amor dos anos sessenta para o enfrentar da cínica realidade dos anos setenta. Paranoia ou realidade?
Com uma narrativa labiríntica onde cada cena vale por si e encerra nela própria uma peça do puzzle temático e narrativo navegamos pelos anseios dos anos 70 onde a família Manson, a guerra no Vietnam, o presidente Nixon, o governador Reagan, o abuso do poder policial e as drogas duras substituem a inocência da erva enquanto símbolo do mote Paz e Amor e cobrem o passado de um manto nostálgico revelando uma realidade onde a generosidade é encarada como uma doença que tem de ser tratada e o capitalismo se revela como um espaço de navegação de figuras sinistras que alimentam verticalmente todas as necessidades, reais e criadas. O espectro da California enquanto fabricação artificial sobre um deserto por construtores pouco escrupulosos navega por Vício Intrínseco relegando o homem comum a um peão do sistema corrompido pelo peso do poder, onde o próprio conceito da família típica americana se revela uma fachada do sistema instalado.
Tal como o livro original de Pynchon, Vício Intrínseco pode ser oblíquo e enigmático, mas altamente recompensador e um dos melhores filmes que vi em 2015.
As Mil e Uma Noites
Em As Mil E Uma Noites, de Miguel Gomes, estamos a milhas das visões pitorescas e condescendentes de telenovelas e outras ficções televisivas que brindam quem diariamente opta por ligar o terrível aparelho em suas casas. Tão pouco é a sua visão a de um historiador ou de mero documentarista. Através de uma mistura única de documentário e ficção Miguel Gomes dá voz a personagens reais e fictícias e usa os seus filmes como meio para se exprimirem contando histórias reais, não por assim terem acontecido mas por serem verdadeiras. E que país vemos reflectido nos seus filmes?
As Mil e Uma Noites propõe-se a retratar histórias decorridas durante um ano do país em crise sob o jugo da troika. O seu enquadramento é a estrutura narrativa d'As Mil e Uma Noites com Xerazade a contar histórias para apaziguar o seu marido, o violento Rei Shariar. Tal como proferido pela própria no Volume 3, O Encantado, parafraseando, "As histórias nascem dos desejos e dos medos dos homens. Servem para para nos ajudar a sobreviver e para ligar o tempo dos mortos ao tempo dos que hão-de viver." Esta passagem, bem como a dedicatória à filha de 8 anos no fim deste mesmo volume, é uma declaração de intenções porque As Mil e Uma Noites oferece uma reflexão através de histórias que reflectem o estado de espírito, as ansiedades, os sonhos (ou falta deles) do nosso país.
Desta forma o filme é um caleidoscópio de observação, sátira, reflexão, comédia, drama, documentário, ficção e fantasia que, se no primeiro volume traz alguma leveza, no segundo volume carrega uma melancolia tão lusitana na sátira em jeito de tragédia grega que tem como peça central um julgamento simbólico de todo o povo português. É um olhar crítico, também, o de Miguel Gomes, não se limitando a condescender com o povo mas virando a câmara também para os seus defeitos e fraquezas.
O terceiro volume apresenta paralelismos entre o tema do filme e o acto de o contar e de contar histórias em geral. Debruça-se sobre um hobbie do qual nada conhecia, o mundo fascinante de passarinheiros de bairros da periferia de Lisboa e dos seus concursos de cantoria de tentilhões. As suas histórias estão intimamente ligadas a estes bairros de habitação social de Lisboa. São histórias que normalmente ficam à margem das visões idealizadas e turísticas da cidade e, parafraseando desta vez o realizador no Volume 1, "há aqui uma qualquer analogia a fazer mas sou muito burro para saber qual é!"
Cavaleiro de Copas
Com Cavaleiro de Copas Terrence Malick prossegue a sua demanda espiritual em forma de filme. Esta é uma experiência indescritível para quem nela não embarca. É um cinema dos sentidos. Não oferece respostas mas sim questões e reflexões sobre as angústias da existência. O proverbial sentido da vida é alvo de uma exploração fragmentada e embalatória. Qualquer tentativa de sinopse é insuficiente para veicular a forma, os sons ou as imagens que formam um mosaico contemplativo e, consistentemente, uma obra de uma espantosa coerência temática e formal.
Cavaleiro de Copas é um companheiro espiritual d’A Árvore da Vida. Retoma os temas das relações fraternais, da angústia da perda, da procura de sentido e do arrependimento. Enquanto que na Árvore da Vida assistimos à perda da inocência e respectivas dores de crescimento, em Cavaleiro de Copas seguimos Rick, um argumentista de sucesso em Hollywood, mas perdido num deserto existencial não sabendo quem é, para onde vai, ou o que vale. O hedonismo do meio por onde se movimenta não substituindo a procura de algo mais substancial e verdadeiro. A que damos valor? Onde colocamos o nosso amor? O que nos reserva o futuro? Quais os ensinamentos do passado? Qual a luz da nossa vida? O que nos move? E o que nos atormenta? Como encontrar o caminho que nos levará das trevas para a iluminação redentora?
Estruturalmente dividido em secções que correspondem a diferentes cartas do tarô, Cavaleiro de Copas tem uma natureza mais episódica mas mantém a forma “Malickiana” habitual onde os momentos são colecções de fragmentos e sensações e onde o tempo é uma variável desconhecida e o passado, o presente e o futuro se fundem numa corrente de consciência existencialista.
Malick é um humanista. Como tal tem consciência do nosso ínfimo lugar na grande escala do universo, patente nas cenas iniciais onde a Terra é observada do exterior em cenas de rara beleza. Em última instância é também um optimista. Em Cavaleiro de Copas o acto de criar vida é encarado como caminho derradeiro para uma centelha de esperança na incessante busca pelo sublime.
O Conto da Princesa Kaguya / Memórias de Ontem
Esta é uma escolha ex-aequo de dois filmes de uma das minhas descobertas do ano: Isao Takahata, escritor e realizador dos estúdios de animação Ghibli.
O Conto da Princesa Kaguya é um filme de 2013 que teve breve passagem comercial nos nossos cinemas e foi posteriormente editado em DVD. Com entusiasmadas referências da imprensa estrangeira arrisquei a compra às escuras e fui altamente recompensado. Além de incluir como extra o documentário inédito sobre os estúdios Ghibli com o título internacional de The Kingdom of Dreams and Madness, O Conto da Princesa Kaguya é uma animação tradicional baseada no folclore japonês O Conto do Cortador de Bambu que conta a história dum cortador de bambu que encontra uma menina dentro de um brilhante talo de bambu e acreditando que ela seja uma presença divina, leva-a para casa.
Contar mais estragaria a experiência de ver este belíssimo filme, por vezes surreal, com passagens que são autênticas aguarelas vivas e que, como outras animações deste estúdio, foca temas que questionam a nossa relação com a natureza, com o indizível e os códigos e padrões humanos que manietam as liberdades individuais.
Por um mero acaso tropecei já na noite de Natal, na RTP 2, em Memórias de Ontem, um filme de 1991 do mesmo realizador. Curiosamente o único título da Ghibli por estrear nos Estados Unidos tem estreia marcada para o ano que se avizinha. Memórias de Ontem é mais uma prova que o melhor filme dos estúdios Ghibli é o próximo filme que vamos ver.
Um drama feminino para adultos não é normalmente tema central de animações mas o olhar de Taeko sobre a sua infância enquanto viaja ao campo para estabelecer o contacto com a natureza e com a vida rural que sente fazer parte de si revela-se uma viagem nostálgica, melancólica e cheia de humor e pequenos momentos verdadeiros e fazem deste mais um título imprescindível para ser descoberto.
Mad Max: Estrada da Fúria
Nada nos podia ter preparado para a obra-prima de acção que é Mad Max: Estrada da Fúria. Um espectáculo de coreografia visual, económico de narrativa, intenso e tocante, consegue a proeza de introduzir uma personagem feminina de antologia, Imperator Furiosa, que ombreia com Max no protagonismo principal e que nos deixa ansiosos por mais sequelas, spin-offs ou qualquer coisa que habite este universo.
Mad Max: Estrada da Fúria é um exemplo perfeito de sequela/reboot/re-imaginação de um franchise pois é a destilação das narrativas e universo herdados dos filmes anteriores sem preocupações de maior com mitologias ou justificações. É um filme totalmente focado na narrativa actual e somos imediatamente lançados para a acção numa opção que torna o conhecimento do que veio antes opcional.
Seguindo o template definido por Mad Max 2: O Guerreiro da Estrada eleva a escala das perseguições motorizadas filmadas com efeitos práticos, desta vez com a ajuda complementar da tecnologia digital, a patamares incríveis de adrenalina e tensão. Tom Hardy interpreta um Max lacónico e Charlize Theron rouba o protagonismo como Furiosa. Os diálogos decorrem, na maior parte, em movimento, no decorrer da acção, fazendo com que o ritmo seja frenético e constante, sem detrimento para a narrativa e para o desenvolvimento, minimalista mas suficiente q.b., das personagens.
O maior feito de George Miller é que consegue orquestrar o caos de tal forma que a acção nunca é confusa. Percebemos sempre o que se passa no ecrã e, mais importante que tudo, quais as motivações e o que está em jogo em cada cena. Como se isto não bastasse ainda consegue tornar o calvário de Max e Furiosa num empreendimento emocional, onde nos envolvemos e preocupamos com o desfecho destas personagens, disfarçando num universo violento, desolado, patriarca e cheio de testosterona uma história de traços feministas que gerou uma (não) polémica incompreensível em alguns sectores da crítica.
Para mim, o filme do ano.
Deixo-vos agora alguns títulos de 2016 que espero com alguma antecipação. O novo Quentin Tarantino, The Hateful Eight [trailer], que está neste momento em roadshow em exibições de 70mm nos EUA e que irá estrear mais tarde numa versão mais curta e que, de forma preocupante, ainda não tem data de estreia prevista para Portugal. Anomalisa [trailer], com estreia prevista a 21 Janeiro, animação stop-motion escrito e co-realizado por Charlie Kaufman. É preciso dizer mais alguma coisa? Salve, César! [trailer] uma nova comédia de Joel & Ethan Coen com George Clooney. Será que repetem a forma de Irmão, Onde Estás? ou o descalabro de Crueldade Intolerável? Saberemos a 25 Fevereiro. Midnight Special [trailer], de Jeff Nichols, autor independente americano responsável por Procurem Abrigo e Fuga, que nos traz um drama de ficção científica com reminiscências de Starman - O Homem das Estrelas. Estreia nos EUA a 18 Março. Depois do sucesso de Boyhood: Momentos de Uma Vida Richard Linklater realiza Everybody Wants Some [trailer]. Com estreia nos EUA a 15 Abril tem sido apontado como a sequela espiritual de Juventude Inconsciente de 1993. A 15 de Dezembro chega o primeiro spin-off oficial do Star Wars, realizado por Gareth Edwards: Rogue One, que contará a história do bando de rebeldes que rouba os planos da Estrela da Morte que leva aos acontecimentos do Star Wars original.
Haverão certamente mais títulos a enriquecer o novo ano, mas correspondessem estes títulos às minhas expectativas e já seria um ano em cheio.