Episódio #25 - O Padrinho / O Cosmonauta Perdido
Inspirado pela primeira sessão do CINEPOP, à qual não pude comparecer, resolvi desempoeirar a minha colecção em DVD e rever O Padrinho, filme de 1972 de Francis Ford Coppola. Como abordar tamanha referência do cinema americano? O Padrinho goza de um estatuto que permeou o consciente colectivo e definiu uma iconografia que é imediatamente identificada com o universo da máfia. Como se isto não bastasse teve duas sequelas, também realizadas por Coppola, sendo que O Padrinho - Parte II, produzido dois anos depois, é muitas vezes considerado uma obra superior ao filme original, tanto em complexidade como em qualidade. A ideia de oferecer uma análise sobre este legado é intimidante. Como evitar clichés ou a redundância face ao que já foi dito anteriormente? Como evitar a hipérbole e os elogios vazios de significado? É uma tarefa ingrata e, de forma a melhor a gerir, vou-me focar apenas no filme original.
A história da produção de O Padrinho é fascinante. Aconselho a quem tenha interesse em saber mais a procurar os materiais de bónus da edição da trilogia em DVD. Quando a Paramount contratou Francis Ford Coppola para adaptar e realizar o best-seller de Mario Puzo que conta a história dos Corleone, uma família mafiosa de Nova Iorque, este era apenas mais um título na sua linha de produção e os executivos estavam longe de imaginar o seu sucesso e impacto cultural. Coppola teve muito trabalho para convencer o estúdio a contratar Al Pacino para o papel central de Michael Corleone, além de ter tido de lutar para manter a história nas décadas de quarenta e cinquenta, tal como no romance. O estúdio não confiava no seu realizador tendo tentado despedi-lo variadas vezes. Marlon Brando teve, inclusivamente, de ameaçar abandonar a produção caso o seu realizador fosse afastado.
Coppola acabou por levar o projecto a bom porto e O Padrinho veio a ser um dos maiores sucessos comerciais de sempre à data da sua estreia, tendo conquistado três Oscares da Academia: Melhor Filme, Melhor Actor, para Marlon Brando e Melhor Argumento Adaptado, para Coppola e Puzo. Este foi também um título decisivo da Nova Hollywood, também designada de Nova Vaga Americana, o movimento que nos anos setenta substituiu o antiquado sistema de estúdios e onde o papel dos realizadores se tornou proeminente. Estes aproveitaram a oportunidade para concretizar projectos pessoais e arriscados que, normalmente, não seriam financiados, até que o descalabro de As Portas do Céu de Michael Cimino encerrou oficiosamente esta era.
Será que O Padrinho resiste ao peso da sua própria história? Esta era a questão que tinha presente quando me preparei para rever o filme e a resposta é um rotundo Sim! Vou tentar sistematizar os porquês. Nunca li o livro de Mario Puzo mas tenho de afirmar que o primeiro elemento basilar desta obra-prima é o argumento escrito pelo próprio, em parceria com o realizador. É um narrativa clássica, na sua forma, como raramente se encontra nos dias de hoje. Não há um único elemento desperdiçado e todas as componentes que são introduzidas narrativamente contribuem organicamente para a história. O cinema americano actual está a atravessar uma fase onde se valoriza muito a plot, ou trama, numa tradução aproximada. E, se trama não falta a O Padrinho, esta é construída através de cenas focadas no carácter das suas personagens. Em momento algum somos distraídos com cenas de exposição ou mesmo com cenas exclusivamente ao serviço da trama. Tudo acontece como consequência das opções que as personagens vão tomando a cada momento.
Que refrescante é ver um filme tão bem escrito como O Padrinho. Nunca servindo o espectador de bandeja, mas nunca o menosprezando. Como exemplo disto merece ser referido o tratamento geográfico e temporal, sem nunca usar títulos no ecrã com o local ou a data dos acontecimentos. Podemos passar vinte minutos de filme na tarde de uma boda de casamento ou saltar um par de anos entre duas cenas sem que haja necessidade de explicitar ao espectador a mudança temporal e sem que esta omissão seja um obstáculo à compreensão. Basta estar atento às subtilezas da cena seguinte e rapidamente se tornará clara a elipse.
Estas opções servem a cada momento a história e os arcos narrativos das suas personagens sem nunca trair os temas do filme revelando-os ou explicitando-os. Como qualquer obra de arte o espectador retirará de O Padrinho aquilo que levar para a sua visualização. Desta forma será benéfico algum interesse sobre a História da América do século XX, indissociável da História do Crime e do Capitalismo.
Outro dos elementos que fez escola com O Padrinho foi a fotografia de Gordon Willis. Apelidado pelo colega Conrad Hall como “O Príncipe das Trevas” foi aqui que Willis começou a ganhar fama com a sua preferência por fotografar em condições extremamente escuras. O tom sépia do filme confere-lhe, também, uma estética intemporal cristalizando-o como um documento apócrifo e alternativo da História Americana da segunda metade do século passado.
Willis foi essencial para o estatuto iconográfico de cenas como a introdução de Don Vito Corleone, interpretado por Marlon Brando, uma figura mítica, digna do temor e respeito que lhe demonstram, e que nem no dia do casamento da sua filha pode deixar de honrar os compromissos da posição que ocupa: o patriarca da família Corleone e o padrinho protector de quem lhe prometer lealdade eterna. O maior elogio que se pode fazer à interpretação de Brando é que este parece, simplesmente, não existir encarnando imperceptivelmente Vito Corleone em pessoa. Considerando a sua reputação na recta final de carreira esta deve ter sido uma das suas últimas interpretações que Brando levou a sério.
Outra revelação, em retrospectiva, é a prestação de Al Pacino como Michael Corleone, muito antes de ser AL PACINO. Michael é um papel exigente que o obrigou a um trabalho de subtileza num percurso que vê a sua relutância transformar-se lentamente numa necessidade de vingança, para culminar no inevitável assumir do papel de liderança da família. Tanto por um sentido de lealdade familiar como também por se revelar ser a sua verdadeira natureza. Alerta de hipérbole: magnífico!
O Padrinho pavimentou a carreira de grande parte do seu elenco. James Caan, Robert Duval ou Diane Keaton tornaram-se nomes reconhecíveis com carreiras invejáveis, mas um nome é incontornável quando se discutem os dois primeiros capítulos desta saga, ou mesmo a Nova Vaga Americana em geral: John Cazale, no papel de Fredo. Com uma vida tragicamente encurtada pelo cancro do pulmão, que o levou aos 42 anos, Cazale interpretou personagens assombradas em cinco obras-primas inesquecíveis dos anos setenta, deixando um legado impressionante para tão curta carreira: além de O Padrinho e da sua sequela colaborou com Coppola em O Vigilante, contracenou novamente com Al Pacino em Um dia de Cão, de Sidney Lumet, e acompanhou Robert de Niro, Christopher Walken e Meryl Streep n’O Caçador de Michael Cimino.
O Padrinho é uma obra imprescindível do cinema americano do século XX. Por tudo o que aqui disse e por tudo o que ficou por dizer ou já foi dito por pessoas bem mais articuladas e inteligentes do que eu. Na era do politicamente correcto e dos estudantes universitários com medo dos livros ou filmes que os possam ofender é preciso revisitar filmes como este e perceber que não temos de subscrever nem nos identificar com as personagens das obras que consumimos e que, se tivermos a abertura para nos deixarmos chocar e sentir, podemos aprender muito sobre nós próprios e sobre o mundo que nos rodeia.
O Cosmonauta Perdido é mais um dos títulos de ficção científica que conheço desde sempre e que nunca tinha visto. Com o título original de Silent Running, é uma produção do mesmo ano de O Padrinho, 1972, apesar de só ter estreado em Portugal em 1980. Foi realizado por Douglas Trumbull, responsável pelos efeitos visuais de 2001: Odisseia no Espaço de Stanley Kubrick, quatro anos antes. Trumbull é uma figura lendária pois viria a ser responsável pelos efeitos especiais em filmes como Encontros Imediatos do Terceiro Grau, O Caminho das Estrelas ou Blade Runner: Perigo Iminente, e viria a abandonar o cinema na sequência da morte de Natalie Wood em 1981 durante a produção de Projecto Brainstorm, a sua segunda realização.
O Cosmonauta Perdido narra a história futurista de um conjunto de naves-cargueiro em viagem pelo sistema solar preservando os últimos vestígios da flora terrestre em grandes cúpulas. Bruce Dern é Freeman Lowell, botânico e ecologista da tripulação da Valley Forge constituída por mais três astronautas que não partilham as suas visões.
Quando, à passagem por Saturno, recebem ordens para libertar as cúpulas no sentido de as destruir com armas nucleares para devolver as naves ao serviço comercial, Lowell percebe que esta ordem vai fazer desaparecer as últimas florestas terrestres e toma decisões drásticas no sentido de as proteger com a ajuda de três pequenos robots de serviço que reprograma para o assistirem e lhe fazerem companhia.
Trumbull teve a inspiração para a história de O Cosmonauta Perdido enquanto trabalhava em 2001 e, tal como o crítico britânico Mark Kermode afirmou, é o complemento sentimental para a abordagem mais cerebral de Kubrick. O coração está no lugar certo mas o seu simplismo sublinha a grosso a sua mensagem ecológica, ao invés de a usar como subtexto. Repare-se no nome da personagem principal: Freeman.
A magia de uma obra-prima cinematográfica é a intemporalidade dos seus vários elementos. A sinergia das várias peças do puzzle que encaixam e produzem algo mágico que nos revela uma qualquer verdade que é válida no ano em que foi feito, tal como cem anos depois. Mas há elementos que contribuem, mais do que outros, para datar inequivocamente um filme. Por vezes é o guarda-roupa, vítima das modas passageiras. Mas a um dos maiores culpados é a música.
E que maior exemplo disto que O Cosmonauta Perdido?! Como se o seu tema não fosse tratado de forma suficientemente primária, com Bruce Dern a encarnar o último dos hippies no espaço, rodeado de ignóbeis ignorantes que o gozam, as canções compostas por Peter Schickele e Diane Lambert, e interpretadas por Joan Baez, são a gota de água que poderá transbordar o copo da boa vontade do espectador do século XXI, mesmo que partilhe das preocupações ambientais aqui abordadas. Apesar da validade do tema e da persistência dos problemas endereçados, Joan Baez encarna uma era e uma ideia de intervencionismo que já não se usa.
É notória a menor qualidade dos efeitos visuais comparando com 2001, a referência à data, mas o filme de Kubrick teve um orçamento dez vezes superior. Reaproveitando o trabalho sobre Saturno desenvolvido neste filme que acabou descartado, O Cosmonauta Perdido procurou algumas opções criativas para gerir o seu orçamento de apenas 1 milhão de dólares, verba muito baixa mesmo para a época. Filmando os interiores da nave Valley Forge num porta aviões descomissionado do mesmo nome limitou a construção de cenários de raiz ao interior das cúpulas que contêm as florestas. Além disso, os robots, batizados por Lowell como Louie, Huey e Dewey, apesar de aparentarem ser o resultado de uma complexa construção mecânica, são na realidade actores com dupla amputação nas pernas a deslocarem-se através dos braços.
O Cosmonauta Perdido é um produto do seu tempo e, como tal, é um filme que o tempo tem feito questão de esquecer. É uma experiência melancólica, algo pessimista e alienadora para quem não seja nostálgico do tempo que o gerou. Ainda assim é um título que qualquer fã de ficção científica tem de conhecer pois é uma referência de inspiração para obras como Wall-E, de Andrew Stanton, e Moon - O Outro Lado da Lua, de Duncan Jones, títulos mais recentes que serão certamente referências futuras deste género.