37 / Os mortos-vivos de George A. Romero / Janeiro 2021
Contrariamente à crença popular, o fenómeno do género zombie não começou em 1968 com o clássico de George A. Romero A Noite dos Mortos-Vivos (The Night of the Living Dead). Na verdade, o conceito zombie é uma apropriação ocidental do folclore Haitiano onde um corpo falecido era reanimado através de vários métodos, nomeadamente magia vodu. Uma das primeiras exposições ocidentais à palavra aconteceu em 1929 no livro de W. B. Seabrook The Magic Island, uma descrição sensacionalista desses cultos. Em 1932, é produzido um dos primeiros filmes do género, White Zombie, realizado por Victor Halperin e interpretado por Bela Lugosi. Este conceito foi, entretanto, aparecendo esporadicamente no cinema em títulos como Zombie (I Walked With a Zombie), realizado por Jacques Tourneur em 1943, e Plano 9 do Vampiro Zombie (Plan 9 From Outer Space), o infame filme de Edward D. Wood Jr de 1959. Até que Romero redefiniu totalmente o género e a percepção moderna do que é um morto-vivo.
Curiosamente a palavra zombie não é proferida vez alguma durante a A Noite dos Mortos-Vivos. Nem sequer Romero tinha consciência do impacto que o seu filme teria na cultura popular ocidental. Tal como admitido pelo próprio, o realizador foi inspirado largamente por Eu Sou A Lenda (I Am Legend), o clássico romance de 1954 por Richard Matheson, e, ao tentar afastar-se do conceito de vampiros utilizado por este, chama às suas criaturas ghouls — um monstro ou espírito maquiavélico da mitologia árabe associado com cemitérios e com o consumir de carne humana. Escrito por Romero em parceria com John A. Russo, o argumento de A Noite dos Mortos-Vivos sugere na sua narrativa que os mortos recentes erguem-se das suas sepulturas por ação de uma misteriosa radiação cósmica que atinge o nosso planeta. O resultado é um exército de criaturas lentas e canibais que perseguem implacavelmente os incautos humanos. Foram os fãs que associaram o termo zombie às criaturas do filme, na sequência do seu enorme sucesso, e depois de a Cahiers du Cinema assim lhes ter chamado, imprimindo na consciência coletiva este ser faminto e sem cérebro.
Quando analisados em retrospetiva, os filmes originais da Trilogia dos Mortos de Romero — A Noite dos Mortos-Vivos, Zombie: A Maldição dos Mortos-Vivos (Dawn of the Dead, 1978) e O Dia dos Mortos (Day of the Dead, 1985) — traçam críticas sociais apontadas às ansiedades próprias do decénio de produção de cada título. Curiosamente a carga racial do original decorre de um mero acaso de casting, porém, ao colocar um ator negro como líder de um elenco de caucasianos num filme passado no final dos anos sessenta no estado rural da Pensilvânia, aliado ao chocante final, o realizador politizou o filme tecendo um comentário social e racial que encontrou eco nas tensões vividas à data nos EUA. No segundo capítulo, apontou a crítica ao galopante consumismo que tinha reflexo nas grandes instalações comerciais onde situou a acção da narrativa. Romero não se retraiu no gore e no elemento assustador das criaturas de reduzidas funções cerebrais, complementando estes componentes com humor negro, por vezes pouco subtil, tornando Zombie: A Maldição dos Mortos-Vivos numa eficiente sátira ao comportamento de uma sociedade capitalista cada vez mais tolhida pelo seu torpor de artificiais necessidades de consumo. Em O Dia dos Mortos, a agenda política de Romero é mais vincada, com uma abordagem mais directa e óbvia aos temas. Neste terceiro capítulo, esgrime argumentos entre o pragmatismo militar e a busca científica, amiúde expressados pelas vozes das personagens. É pena a caracterização caricatural dos soldados, invalidando o debate sobre os méritos da luta pela salvação da humanidade, tal o desequilíbrio da balança que revelava o pessimismo do autor.
Por causa de um erro do distribuidor no registo dos direitos sobre o filme, A Noite dos Mortos-Vivos entrou no domínio público nos EUA. Isto deu origem, desde então, não só a um número infindável de edições em VHS e DVD por inúmeras distribuidoras, como a variados remakes e sequelas por produtoras independentes. Outro capítulo atribulado aconteceu entre Romero e o co-argumentista John A. Russo. Na sequência de um desentendimento entre os dois, lutaram pelos direitos de uma eventual sequela, tendo acabado por acordar que cada um poderia fazer a sua própria versão. Russo reteve os direitos sobre a designação Living Dead. Escreveu então o livro Return of the Living Dead, adaptado por Dan O' Bannon no filme do mesmo nome em 1985, em plena febre zombie série-B. Persistentes, as criaturas acéfalas chegariam ao grande público no virar do milénio, dando início a uma nova vaga de popularidade do género cimentada em 2010 com a série televisiva The Walking Dead. George Romero voltaria no final da carreira ao tema que lhe deu fama com Terra dos Mortos (Land of the Dead, 2004), Diário dos Mortos (Diary of the Dead, 2007) e A Ilha dos Mortos (Survival of the Dead, 2009). Apesar das reacções menos entusiasmadas a estes três títulos, a sua importância para o género felizmente permaneceu intacta, e o seu legado perdura inabalável em filmes, livros, jogos e séries televisivas.
António Araújo, revisão em Janeiro de 2021 de uma série de textos originais escritos entre Março e Julho de 2017.
Fontes primárias
Cinema
A Noite dos Mortos-Vivos (The Night of the Living Dead, George A. Romero, 1968);
Zombie - A Maldição dos Mortos-Vivos (Dawn of the Dead, George A. Romero, 1978);
O Dia dos Mortos (Day of the Dead, George A. Romero, 1985);
Terra dos Mortos (Land of the Dead, George A. Romero, 2005);
Diário dos Mortos (Diary of the Dead, George A. Romero, 2007);
A Ilha dos Mortos (Survival of the Dead, George A. Romero, 2009).
Fontes secundárias
Cinema (lista não exaustiva)
White Zombie (Victor Halperin, 1932);
Zombie (I Walked with a Zombie, Jacques Tourneur, 1943);
Plano 9 do Vampiro Zombie (Plan 9 From Outer Space, Edward D. Wood Jr., 1957);
O Circo das Almas (Carnival of Souls, Herk Harvey, 1962);
O Último Homem na Terra (The Last Man on Earth, Ubaldo B. Ragona e Sidney Salkow, 1964);
Guerra Ao Vírus Da Loucura (The Crazies, George A. Romero, 1973);
Zombi 2 - A Invasão dos Mortos Vivos (Zombi 2, Lucio Fulci, 1979);
Os Mistérios da Cidade Maldita (Paura nella città dei morti viventi, Lucio Fulci, 1980);
Reencarnações (Dead & Buried, Gary A. Sherman, 1981);
O Regresso dos Mortos Vivos (The Return of the Living Dead, Dan O’Bannon, 1985);
Noite dos Arrepios (Night of the Creeps, Fred Dekker, 1986);
O Regresso dos Mortos-vivos 2 (Return of the Living Dead: Part II, 1988);
O Regresso dos Mortos Vivos III: Experiência Maldita (Return of the Living Dead III, Brian Yuzna, 1993);
O Despertar dos Mortos Vivos (The Night of the Living Dead, Tom Savini, 1990);
Morte Cerebral (Braindead, Peter Jackson, 1992);
Versus (Ryûhei Kitamura, 2000);
28 Dias Depois (28 Days Later…, Danny Boyle, 2002);
Resident Evil (Paul W. S. Anderson, 2002);
Shaun of the Dead (Edgar Wright, 2004);
O Renascer dos Mortos (Dawn of the Dead, Zack Snyder, 2004);
O Dia dos Mortos 2 - Contágio (Day of the Dead 2: Contagium, Ana Clavell e James Dudelson, 2005);
O Regresso dos Mortos-Vivos 4 - Necrópolis (Return of the Living Dead: Necropolis, Ellory Elkayem, 2005);
O Regresso dos Mortos-Vivos 5 - Dança Mortal (Return of the Living Dead: Rave to the Grave, Ellory Elkayem, 2005);
Night of the Living Dead 3D (Jeff Broadstreet, 2006);
28 Semanas Depois (28 Weeks Later, Juan Carlos Fresnadillo, 2007);
REC (Jaume Balagueró e Paco Plaza, 2007);
O Dia dos Mortos (Day of the Dead, Steve Miner, 2008);
Night of the Living Dead: Resurrection (James Plumb, 2012);
WWZ: Guerra Mundial (World War Z, Marc Forster, 2013);
Sangue Quente (Warm Bodies, Jonathan Levine, 2013);
Como Enterrar a Ex (Burying the Ex, Joe Dante, 2014);
Night of the Living Dead (Chad Zuver, 2014);
O Lamento (Gokseong, Na Hong-jin, 2016);
Train to Busan (Busanhaeng, Sang-ho Yeon, 2016);
Day of the Dead: Bloodline (Hèctor Hernández Vicens, 2017);
One Cut of the Dead (Kamera wo tomeruna!, Shin’ichirô Ueda, 2017);
Anna e o Apocalipse (Anna and the Apocalypse, John McPhail, 2017);
Operação Overlord (Overlord, Julius Avery, 2018);
Os Mortos Não Morrem (The Dead Don't Die, Jim Jarmusch, 2019).
Documentário (lista não exaustiva)
Doc of the Dead (Alexandre O. Philippe, 2014).
Televisão (lista não exaustiva)
The Walking Dead (2010- ).