História de um vigilante
Este texto foi publicado originalmente na Take Cinema Magazine dia 30 de agosto de 2016 com o título [Patinho Feio] O Vigilante – The Conversation (1974) e pode ser lido na íntegra aqui.
Entre as obras primas O Padrinho e O Padrinho – Parte II, Francis Ford Coppola realizou um filme mais discreto que, ainda assim, venceu a Palma de Ouro de Cannes de 1974 e foi nomeado para o Oscar de Melhor Filme em 1975, perdendo para a segunda parte da saga mafiosa do mesmo realizador. Coppola escreveu o argumento nos anos sessenta e chegou a anunciar o projecto como o seu filme após O Vale do Arco-Íris, em 1968, mas foi apenas com o sucesso de O Padrinho que conseguiu concretizar O Vigilante. Gene Hackman, jovem estrela na altura, já comOs Incorruptíveis Contra a Droga no currículo, interpreta Harry Caul, um homem mais velho, com uma personalidade completamente diferente da sua. Apesar das dificuldades que sentiu a sua interpretação é o pilar de O Vigilante pois Harry não só está no centro da trama como está presente virtualmente em todas as cenas.
Coppola inspirou-se numa conversa com o realizador Irvin Kershner sobre vigilância para escrever o filme, tendo também citado História de Um Fotógrafo, de Michelangelo Antonioni, como uma influência fundamental na concepção dos seus temas, como a vigilância em oposição à participação e a percepção em contra ponto à realidade. Harry, colabora com Stan, interpretado pelo meteórico John Cazale, em conjunto com alguns associados, na tarefa de capturar a conversa de um casal enquanto se passeia por uma movimentada praça no centro de São Francisco. Durante a conversa discutem o medo de estar a ser vigiados e mencionam uma reunião discreta num quarto de hotel a ocorrer dentro de poucos dias. O desafio de gravar esta conversa é realizado pela colocação dos vários agentes de vigilância em posições diferentes à volta da praça. Depois de Harry misturar e filtrar as gravações de diferentes faixas o resultado final é uma gravação de som em que as palavras tornam-se claras apesar do seu significado real permanecer ambíguo.
Harry Caul é, supostamente, um nome de referência na área de vigilância, mas é também um ser anti-social, mantendo uma relação amorosa frágil por causa da sua incapacidade de assumir o compromisso. Harry, assombrado por acontecimentos trágicos do seu passado, acredita que, de forma a proteger o sigilo da sua profissão, não pode revelar nada de pessoal. Mas, ao mesmo tempo, revela-se descuidado, e até amador, na forma como é constantemente manipulado por terceiros. É um personagem fascinante, numa interpretação que exigiu muito de Hackman, inclusivamente na composição física, onde teve de usar um par de óculos fora de moda e uma gabardina transparente e desadequada.
A cena inicial da captura da conversa entre o casal é a peça central de O Vigilante e a força motriz que coloca Harry no centro do puzzle que, não só é despoletado pelo envolvimento do mesmo com os sujeitos observados, contra os seus próprios supostos princípios, como vai mudando de forma e significado à medida que as várias peças se vão encaixando. A solidão de Harry parece alimentar o interesse que desenvolve pelo caso, fantasiando com a mulher observada num sonho onde lhe revela aquilo que não é capaz de revelar à sua própria namorada, contando-lhe pormenores íntimos e pessoais. O que se desenrola então é um estudo sobre percepção, presunção e interpretação. Por vezes o todo é mais do que a soma das partes e Harry, ao reconstruir a cena inicial no seu cérebro, examinando as gravações, melhorando a edição, filtrando e tratando o som, vai dando novas e diferentes interpretações ao que ouve, faltando-lhe, ainda assim, a subtileza das inflexões e entoações que dão o verdadeiro significado ao que é dito.
O papel da edição, tanto de som como de imagem, é de fundamental importância pois estas recriações são ilustradas por imagens que recriam o que vimos na cena inicial, mas de diferentes perspectivas. Walter Murch, colaborador de George Lucas em THX1138, tem também aqui um papel determinante pois, não só foi o responsável por estas edições, como o fez na recta final do projecto sem a supervisão de Coppola, ocupado com a pré-produção de O Padrinho – Parte II. Além dos diferentes flashbacks sugerirem outros olhares, os diálogos vão-se alterando através da utilização de diferentes takes no sentido de reforçar a mudança de percepção de Harry a cada novo passo.
A descontextualização de Harry, e o seu envolvimento, têm um desfecho inevitavelmente trágico. A história repete-se, independentemente do acumular de experiência ou tecnologia. A espiral de paranóia da cena final é o reflexo da sua própria intromissão na vida dos outros, um mal crónico do qual é impossível escapar. Francis Ford Coppola assina aqui um filme discreto na sombra dos seus filmes mais celebrados mas para que não fiquem nenhumas dúvidas nem interpretações erradas vou afirmá-lo claramente: O Vigilante é uma obra-prima!
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