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Quem canta os seus males espanta

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Este texto foi publicado originalmente na Take Cinema Magazine dia 1 de setembro de 2016 com o título Florence, Uma Diva Fora de Tom e pode ser lido na íntegra aqui.

Stephen Frears tem uma carreira curiosa e algo discreta, para os mais distraídos. O realizador britânico é uma figura versátil, demonstrando à vontade nos mais variados géneros. Com duas nomeações para os Oscares, é dele o drama A Minha Bela Lavandaria, o histórico Ligações Perigosas, o neo-noir Anatomia de Um Golpe e, um dos meus favoritos pessoais, a comédia romântica/melómana Alta Fidelidade. No ano em que estreou nos cinemas portugueses o seu biopic de Lance Armstrong, Vencer a Qualquer Preço, estreia o seu mais recente filme, também baseado numa personagem verídica, Florece Foster Jenkins. Esta é uma história que tem de ser vista (e ouvida) para ser acreditada. Nos meados dos anos quarenta, em plena Segunda Guerra Mundial, Florence, uma abastada herdeira, patrona das artes, persegue o seu sonho de ser cantora de ópera com o apoio do seu marido, St Clair Bayfield, e, apesar de ter uma voz terrível, decide dar um concerto no famoso Carnegie Hall.

A reconstituição de época é irrepreensível, pintando-a com um olhar algo nostálgico e idealizado, a moldura perfeita para o trabalho de actores, perfeitamente confortáveis nas suas caracterizações. Simon Helberg, conhecido dos espectadores da série televisiva A Teoria do Big-Bang, oferece uma interpretação cheia de maneirismos, no limite da caricatura, mas que proporciona os momentos de maior leveza e humor, sempre que está em cena. A sua personagem, o pianista Cosmé McMoon, é aquela com que o espectador se identifica, testemunha incrédula dos esforços de quem rodeia Florence para manter a ilusão. Meryl Streep é, mais uma vez, magnífica. Além do seu desempenho vocal consegue dar espessura dramática a uma personagem que poderia ser apenas um alvo de chacota. No entanto o seu entusiasmo é genuíno, e a sua personagem, se bem que iludida, carrega consigo o arrependimento de acontecimentos passados que impediram de perseguir os seus sonhos, optando por criar outros, para que a sua vida valha a pena viver. E o que dizer de Hugh Grant? Melhor que nunca, interpreta com subtileza e visível emoção uma personagem que, apesar das suas indiscrições, apoia incondicionalmente Florence, protegendo-a da realidade com a melhor das intenções. 

O maior trunfo de Stephen Frears é a navegação entre a ilusão e o risco constante desta ser colocada em causa pela realidade da situação. Florence não tem noção da sua voz. Muito possivelmente, na sua cabeça, soa maravilhosamente. Mas as motivações de quem a rodeia variam. Há quem se queira aproveitar do facto para benefício próprio, como o professor de canto. Há quem queira apontar o dedo e ridicularizar, como a corista Agnes Stark. E depois há o seu marido que apenas pretende a sua felicidade. Frears guia-nos metodicamente pelo processo de crescente empatia para com Florence. Primeiro permite que o espectador se divirta às suas custas. Depois, vai-o puxando lentamente para a sua companhia, revelando a complexidade do seu sonho e do mecanismo com que St Clair pretende torná-lo realidade. No final, tal como acontece com McMoon, ou mesmo com Agnes, somos conquistados pela coragem e motivação de Florence. Já não nos rimos dela e o sorriso que ostentamos reflecte o prazer de assistir ao seu momento. Mesmo a própria, depois da ilusão estilhaçada, reconhece o que realmente importa: "Podem dizer que não sabia cantar, mas não podem dizer que não cantei".

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