Uma comunhão demasiado íntima com Nick Cave
Este texto foi publicado originalmente na Take Cinema Magazine dia 10 de setembro de 2016 com o título One More Time With Feeling e pode ser lido na íntegra aqui.
Falar de One More Time With Feeling é falar do novo álbum de Nick Cave, Skeleton Tree, e da tragédia que, inesperadamente, lhe bateu à porta no verão de 2015 quando perdeu o filho Arthur, de 15 anos, num acidente perto de Brighton, onde a família vive. O traumático evento assombra, não só o novo álbum, um tocante e doloroso luto partilhado com o mundo, bem como o documentário realizado por Andrew Dominik gravado durante as sessões de overdubbing daquele onde Cave parece procurar uma forma de terapia, questionando ao mesmo tempo a validade e o objectivo do veículo escolhido para o fazer. Lançado num evento mundial inédito, agendado para ser exibido, tanto em 2D como em 3D, numa única sessão por vários cinemas de vários países no dia anterior ao lançamento de Skeleton Tree, e apenas dois anos depois do celebratório e inspirador 20.000 Dias na Terra, é uma experiência muito diferente deste filme. 20.000 Dias na Terra é uma mistura de ficção e documentário que celebra, não só a carreira de Nick Cave, como o processo criativo e o poder transformativo do espírito criativo. Filmado por Iain Forsyth e Jane Pollard é um filme de grande beleza estética que extravasa o círculo de fãs do cantar australiano oferecendo motivos de interesse para um público mais genérico. Curiosamente funciona como um díptico involuntário, a par de One More Time With Feeling, pois mostra, num momento de intimidade familiar, Nick Cave a partilhar uma pizza em frente televisão com os filhos Arthur e Earl, numa cena que ganhou uma nova carga emocional depois da morte de Arthur.
Mas falar de One More Time With Feeling é também falar da minha relação com Nick Cave. Descobri a sua música em 1992, pois foi com Henry's Dream que conheci este senhor cavernoso que nos cantava narrativas vívidas e encharcadas de morte, amor, religião e fé, embrenhadas numa aura de tradição folk misteriosa e sedutora. Dizem que não há amor como o primeiro e Henry's Dream continua a ser um dos meus álbuns favoritos de Cave, apenas ultrapassado pelo seguinte, Let Love In, mas aquele marcava, na altura, uma mudança na sua sonoridade pós-punk, e da melancolia de algumas das músicas baseadas no piano, dos primeiros seis álbuns. Apesar de coerente, tematicamente, a predominância da guitarra acústica na construção das músicas era uma novidade, bem como a agressividade das interpretações, reforçadas no excelente álbum ao vivo Live Seeds que, não só cristalizou os melhores momentos de Henry's Dream, como abriu a porta para as músicas mais marcantes da discografia anterior que, obcecado por completude como sempre fui, tive de procurar e conhecer com afinco. Foi também de Nick Cave, com os seus Bad Seeds, o meu primeiro concerto realmente marcante. Foi a 10 de junho de 1994, no Coliseu dos Recreios em Lisboa, na promoção de Let Love In, lançado dois meses antes, que senti o poder de uma verdadeira celebração musical, invasão pacífica do palco incluída, num momento importante e influente nas minhas escolhas futuras, não só de carácter cultural, como pessoal.
Mas esta relação não tem sido um mar de rosas. O genericamente celebrado The Boatman's Call de 1997 iniciou uma fase de reduzido entusiasmo em relação à obra de Cave. Embora a minha idade pudesse justificar a reação desconfiada à súbita maturação da sua música, a verdade é que, álbum após álbum, o meu interesse foi diminuindo progressivamente, com os pontos mais baixos a serem atingidos em No More Shall We Part e Nocturama, os álbuns de 2001 e 2003, respectivamente. Apesar da minha relação tremida com estes álbuns, Nick Cave sempre permaneceu um dos favoritos da crítica, angariando inclusivamente novos adeptos, encarados com cepticismo pela velha guarda de fãs como a consequência da colaboração com Kylie Minogue no Murder Ballads, de 1996, e do lançamento da compilação The Best of Nick Cave & The Bad Seeds dois anos depois, numa manobra comercial ao qual muitos consideravam Cave imune. Curiosamente é nesta fase que o influente Blixa Bargeld abandona os Bad Seeds e Nick Cave estreita a sua colaboração com Warren Ellis, multifacetado e talentoso instrumentista com quem também compõe bandas sonoras, nomeadamente para o compatriota John Hillcoat e para o vizinho neo-zelandês Andrew Dominik - não é coincidência ser dele a realização de One More Time With Feeling. Apesar do óbvio talento responsável pelo díptico Abattoir Blues/The Lyre of Orpheus e Dig, Lazarus, Dig!!! é só em 2013, com Push The Sky Away, que se dá o primeiro passo no sentido de uma verdadeira reconciliação. Push The Sky Away marca o primeiro álbum dos Bad Seeds depois da partida de Mick Harvey, guitarrista que acompanhava Nick Cave desde os The Birthday Party, e o regresso do baixista Barry Adamson, e foi descrito pelo seu autor como um "bebé-fantasma na incubadora" sustentado pelos loops de Warren Ellis funcionando como "os seus pequenos e hesitantes batimentos cardíacos". É uma obra maior que, ao servir de base a 20.000 Dias na Terra, fez ressurgir Nick Cave com uma renovada relevância, pelo menos aos meus olhos, muito embora tenha a noção que a opinião que aqui exprimo não considerar sequer o seu trabalho como escritor, tanto de argumentos de filmes como Escolha Mortal e Dos Homens Sem Lei, como de romances como A Morte De Bunny Munroe.
Andrew Dominik é um esteta visual. Os seus dois filmes com Brad Pitt provam-no, especialmente a obra-prima ignorada O Assassínio de Jesse James Pelo Cobarde Robert Ford, que teve a colaboração de Nick Cave na banda sonora, acompanhado por Warren Ellis, e num pequeno papel. A novidade em One More Time With Feeling é a utilização do 3D num documentário a preto e branco, na sua maior parte, íntimo e pessoal envolvendo a gravação de um álbum musical. Não vi o filme em 3D e acredito não ter tido uma pior experiência por isso. Dominik incorpora as dificuldades técnicas na própria experiência narrativa do filme que serve, tanto como cartão de visita ao novo álbum, como de veículo poético para um artista em sofrimento. Muito mais hermético do que 20.000 Dias na Terra, e por isso uma experiência mais recomendável para apreciadores de Cave, é um filme que necessita do contexto prévio para ser devidamente apreciado. A perda pessoal de Cave é mencionada desde o primeiro momento e informa o filme todo, tornando-se o seu peso inexorável na recta final, quando se torna impossível rodear a questão. Não é um filme fácil, nem Skeleton Tree é um álbum fácil. A experiência de One More Time With Feeling é tão tocante como sufocante, com momentos constrangedores para o realizador, para o objecto da sua câmara e para os espectadores, sendo permeado pela questão da validade da sua existência. Nas palavras de Dominik "Como podem imaginar, foi um evento catastrófico para a família Cave. Eles estão traumatizados . Nick decidiu acabar o disco. Quando percebeu que tinha de o promover ficou doente só de pensar nisso: ter de falar com os jornalistas sobre Arthur. Ele não sentia que poderia fazê-lo com estranhos. O instinto inicial de Nick foi proteger-se a si mesmo para não ter que responder a perguntas. Ele torna-se o único assunto que existe, todo o filme trata de lidar com os sentimentos de luto de Nick."
A verdade é que Nick Cave não tem uma editora discográfica e autofinancia os seus próprios discos e promoção, contando com One More Time With Feeling, pelo menos, cobrir os seus custos e retirar dele os videoclipes para os singles do álbum. As interpretações das músicas são irrepreensíveis e, salvo erro meu, contém sete dos oito temas de Skeleton Tree, ficando apenas a faltar Rings of Saturn. Mas é uma introdução com demasiada carga emocional para um álbum que, ouvindo à posteriori, parece respirar melhor no seu formato definitivo, revelando-se uma experiência demasiado íntima para se ouvir na companhia de estranhos numa sala de cinema e melhor apreciada em casa com uns bons headphones, correndo mesmo o risco de, por si só, ombrear com qualquer um dos álbuns clássicos da discografia do seu autor. Entretanto, em alguns países, a pedido dos espectadores, agendaram-se exibições adicionais de One More Time With Feeling. Se repetirem a experiência da minha sessão ninguém se mexerá das suas cadeiras até ao correr integral dos créditos finais, e o caminho para o exterior da sala será como uma procissão de fãs devotos com o coração apertado na sequência de uma comunhão demasiado íntima com um artista que é, ao fim e ao cabo, um humilde humano sofredor como nós.
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