Upgrade
Leigh Whannell é um actor e argumentista natural da Austrália que, juntamente com James Wan, criou duas sagas de terror recentes de enorme popularidade, iniciadas em 2004 por Saw – Enigma Mortal e em 2010 por Insidious – Insidioso. Normalmente na sombra do mais reconhecido parceiro — apesar de Whannell ter dado a cara como actor, ao fim e ao cabo Wan foi o realizador daqueles dois filmes —, estreou-se na realização em 2015 de forma pouco promissora com o terceiro capítulo de Insidious, quando Wan partiu à procura de voos mais altos.
Chegados ao MOTELX 2018, Leigh Whannell aparece como convidado de honra do festival alguns meses depois da estreia da sua segunda realização no Festival de Cinema South By Southwest, seguida de um lançamento no mercado de video-on-demand. Upgrade, exibido em estreia nacional no dia 7 de Setembro, é um filme com a chancela da Blumhouse, produtora independente do momento gerida por Jason Blum — que faz questão em nunca ultrapassar os $5M nos seus orçamentos — que rapidamente ganhou fama de ser um eficaz exemplo de ficção científica orientada à acção com alguma dose de violência gráfica que denuncia as origens do seu autor.
Num futuro não muito distante, em que a tecnologia ajuda cada vez mais o Homem nas suas tarefas mundanas, Grey Trace, interpretado por Logan Marshall-Green, é uma excepção. Algo tecno-fóbico, constrói automóveis antigos com as próprias mãos para os vender a ricos excêntricos como Eron Keen, na pele do actor Harrison Gilbertson, um visionário tecnológico que afirma ter inventado um chip que irá mudar o mundo porque é capaz de fazer tudo — sim, leram bem: tudo. Quando a mulher de Grey, Asha, encarnada por Melanie Vallejo, é assassinada e Grey fica tetraplégico num ataque ao casal por homens com armas implantadas no seu próprio corpo liderados pelo fuinha Fisk, o desconhecido do grande público Benedict Hardie, Eron aparece com uma proposta irrecusável. Se Grey permitir que lhe implantem em segredo o chip revolucionário, denominado Stem, este recuperará a sua motricidade. Tudo corre bem, até que Stem se revela senciente e fala com Grey, incitando-o e ajudando-o a procurar os assassinos da mulher.
Upgrade é feito de inspirações e referências. Se a fusão entre corpo e máquina remetem para grande parte da filmografia de David Cronenberg e para Robocop – O Polícia do Futuro, o clássico de Paul Verhoeven, a construção de uma sociedade cibernética ligada globalmente em rede e a emergência de entidades informáticas dotadas de inteligência artificial, bem como a existência periférica de uma realidade virtual, remetem para o universo de William Gibson popularizado com a sua obra de referência de 1984, o romance Neuromante (ou Neuromancer, no original). A sua missão de vingança, que envolve o tentar desvendar de um mistério, cola-se aos lugares-comuns do film noir — e a fotografia na sua maior parte noturna denuncia isso mesmo —, mas aqui com uma reviravolta: a intervenção de Stem permite que o homem-comum Grey se torne uma implacável e eficiente máquina de matar. Neste ponto, torna-se também inevitável, a evocação da memória de 2001: Odisseia no Espaço, a obra-prima de Stanley Kubrick que definiu o derradeiro confronto entre homem e máquina.
Com base nessa premissa, Whannell diverte-se — e a nós, no processo — a construir situações em que Grey se surpreende com as suas capacidades enquanto avia os maus-da-fita sem misericórdia. Apesar da escrita não ser brilhante — especialmente os diálogos — o humor e a violência inusitada levam-nos na viagem e aguçam a curiosidade em relação à progressão narrativa. A construção do mundo é verosímil, partindo da nossa realidade actual e desenhando inovações tecnológicas que não parecem assim tão distantes. Este é um dos seus maiores trunfos: apesar da pseudo-ciência explanada no guião, batota cinematográfica para colocar a bola a rolar, o enraizamento da componente fantástica numa realidade reconhecível oferece-lhe um ar de ficção científica premonitória e de caução, lançando timidamente em alguns momentos o debate sobre a ética do uso da tecnologia, bem como o confronto entre o natural e o artificial.
No final, é irrelevante que a resolução do mistério não faça muito sentido. A ambição e pretensão de Leigh Whannell não são suficientes para que o tiro lhe saia pela culatra e o resultado é um desempoeirado filme de acção futurista que combina as referências que invoca em 100 minutos de pura diversão.
O episódio do podcast Segundo Take dedicado a Upgrade pode ser ouvido aqui.