O Homem Invisível
Abençoado fracasso de Tom Cruise no lançamento do universo cinematográfico partilhado “Dark Universe”. A Múmia, realizado por Alex Kurtzman em 2017, pretendia ser o primeiro de um universo, à imagem da história de sucesso da Marvel, que iria recuperar os chamados “Monstros da Universal”, um conjunto de títulos de terror, fantasia e ficção científica popularizadas nos decénios de 1930 e 1940 pela Universal Pictures. A múmia, o monstro de Frankenstein, o lobisomem, Drácula ou o homem invisível são algumas das personagens mais célebres deste conjunto que teriam novas leituras para o novo milénio com filmes de grande orçamento encabeçados por nomes sonantes de Hollywood. Alinhados no seguimento do esperado blockbuster apadrinhado pela mega-estrela Tom Cruise apareciam A Noiva de Frankenstein, com Javier Bardem e Angelina Jolie, e O Homem Invisível, a ser encarnado (ou descarnado) por Johnny Depp. Porém, os resultados de bilheteira muito aquém do esperado colocaram um travão nestes planos já em movimento, e, apesar de decorridos apenas alguns anos, o tal universo negro esfumou-se discretamente nas brumas da memória. No entanto, os títulos que o constituíam não caíram no esquecimento, e o sempre atento Jason Blum, cabecilha da Blumhouse Productions e actual rei das baixas-produções de terror, pegou no projecto de O Homem Invisível. Na verdade, não é justo chamar ao seu modelo económico uma fábrica de baixas-produções. Jason Blum tem o dom de não gastar mais um centavo do que é necessário para rentabilizar as obras que produz, numa abordagem de baixo-risco financeiro que lhe permite correr recompensadores riscos criativos, confiando em autores e realizadores ao ponto de lhes oferecer total controlo criativo e artístico. Foi o que aconteceu com O Homem Invisível, oferecido a Leigh Whannell no seguimento da aclamação crítica de Upgrade, a sua realização de 2018 que rendeu à Blumhouse um retorno de mais de cinco vezes o seu custo de produção. Whannell, também responsável pelo argumento, encarregou-se de actualizar para o século XXI o romance original de 1897 por H. G. Wells popularizado por uma série de filmes da Universal iniciada pela adaptação de 1933 escrita por R. C. Sherriff e realizada por James Whale.
Mais uma vez, a adaptação de O Homem Invisível é actualizada para os tempos modernos de forma inesperada e, ao mesmo tempo, tão apropriada que convoca a interrogação de como é que nunca tínhamos tido até agora tal abordagem. Cecilia, protagonizada por Elisabeth Moss, foge de uma relação abusiva, revelando sinais de trauma psicológico que teimam em desaparecer. Mesmo depois do anúncio da morte de Adrian Griffin, o controlador ex-namorado de Cecilia, riquíssimo cientista na área da óptica que lhe deixa em testamento uma choruda pensão financeira, interpretado por Oliver Jackson-Cohen. Quando a normalidade parece regressar lentamente à vida de Cecilia, dão-se estranhas ocorrências que levam as pessoas amigas que a protegeram a duvidarem da sua sanidade, enquanto esta começa a pressentir a presença invisível de Adrian à sua volta.
Leigh Whannell estabelece logo na abertura a dinâmica entre Adrian e Cecilia numa cena brilhante e tensa que é uma masterclass de construção narrativa para cinema. Numa longa sequência, de ritmo compassado e deliberado para uma eficiente acumulação de ansiedade, Cecilia abandona a cama que partilha com Adrian, enquanto este dorme, para escapar da mansão que mais parece uma fortaleza através de um plano obviamente desenhado previamente. Sem diálogos, apenas de forma visual e com uma utilização eficaz do som, esta cena estabelece o tom para o resto do filme, transmitindo tudo o que precisamos de saber sobre as personagens e a natureza da sua relação. Além disso, logo aqui, através do movimento da câmara para um corredor onde não se encontra ninguém, Whannell incute temor a lugares vazios, sugerindo a possibilidade da presença de algo onde nada se consegue ver. Esta utilização do espaço negativo, tantas vezes ignorado ou mal-tratado no cinema, e de planos que sugerem perspectivas de ponto-de-vista, tornam-se aqui irrepreensíveis e económicas ferramentas de criação no espectador de um estado intensificado de atenção e tensão. Porque o que não vemos rodeia-nos completamente e permanentemente, e, ao temermos nada, acabamos com medo de tudo.
Se a história original oferece a perspectiva do cientista cuja arrogância é a causa da sua própria queda, nesta re-interpretação da narrativa somos convidados a acompanhar e empatizar com a vítima da sua manipulação e tentativa de controlo, num diálogo óbvio com o sabor do tempo hodierno. Presente está também o estudo da ausência de moralidade de mãos dadas com a invisibilidade, nesta encarnação contextualizado pela cultura tóxica masculina que encara a mulher como propriedade. Sem testemunharmos os acontecimentos passados, somos convidados a acreditar nas alegações fantásticas de Cecilia pela força da convicção da interpretação de Elisabeth Moss na representação da consequência dos abusos sofridos e das suas sequelas, porque o abuso não termina no momento em que se consegue escapar ao abusador. Sem ser óbvio ou desajeitado, e através da mecânica de um filme de género, Leigh Whannell convida-nos a tomar o passo de fé e acreditar na palavra da Mulher, tantas vezes desacreditada ou ignorada quando pede ajuda e exige justiça. Este é um dos elementos surpreendentes e modernos na abordagem a esta história. Ainda no episódio passado falava de gaslighting, e é disso que continuamos a falar aqui, desta vez com a cobertura imoral do anonimato e desresponsabilização pela invisibilidade. Porque Cecilia, e note-se no diminutivo Cee, ou seja, “a que vê”, ao contrário de quem a rodeia, consegue não só ver quem Adrian é verdadeiramente, como consegue perceber que, mesmo não o vendo, ele está ali. O que a faz efectivamente parecer desequilibrada e, mesmo os amigos que a rodeiam e que nela acreditam, vão tendo a sua boa-vontade minada pelo que aparentam serem as acções de alguém no limite da sanidade, o que finalmente revela uma sistémica incapacidade de ajudar e acreditar em quem mais precisa de ajuda. Uma demonstração da pressão por vezes discreta efectuada sobre as mulheres é revelada na entrevista de emprego de Cecilia, em que o potencial empregador, ao lançar-lhe um piropo aparentemente inofensivo, estabelece logo uma posição de poder com base no género. Este não é o monstro nem o agressor no centro da trama, apenas uma personagem inofensiva e passageira, mas a sua acção mundana e ignorante da situação pessoal de Cecilia é mais um exemplo da enraizada engrenagem patriarcal que começa a ser lentamente desvendada e desconstruída.
Volto a Elisabeth Moss pois a sua interpretação é essencial para O Homem Invisível funcionar. A actriz está em cena em virtualmente todos os momentos do filme e demonstra uma versatilidade que lhe permite modular entre momentos de grande tensão e outros em que revela controlo sobre os seus sentimentos mais exacerbados. É ainda ajudada por um argumento inteligente e minimalista que nem sempre alivia com sustos fáceis a expectativa acumulada, prolongando o estado de ansiedade, e, quando o faz, é de forma honesta e merecida. Mas nem só de contenção se faz um filme de emoções fortes, e quando estas chegam funcionam como verdadeiros choques encenados com mestria, como por exemplo a memorável cena do restaurante sobre a qual não me adianto a não ser para revelar que Elisabeth Moss tem aqui um momento de um turbilhão de confusão, incredulidade, dor, raiva, frustração e tantos outros sentimentos que vale só por si o preço de admissão. É neste momento que as engrenagens narrativas mais convencionais entram em acção, levando a algumas revelações que podem não funcionar formalmente para o desenrolar da acção mas que estão em perfeita sintonia temática com o resto do filme. Mais uma vez em diálogo com a realidade, há uma tendência para, à mínima oportunidade, resolver legalmente as situações de forma célere. Porém, quando Cecilia toma conta do seu destino, nada mais bastará a não ser justiça pelas indignidades que sofreu, navegando por cinzentos morais de afirmação, no mínimo, pessoal (evitando vergar a personagem com o peso da representatividade de todo um género) e de total, satisfatória e justa retribuição.
O Homem Invisível é um exemplo perfeito de como a criatividade e a entrega artística são muitas vezes mais importantes que um grande orçamento. Leigh Whannell surpreende numa releitura desta história que recupera o lado negro da personagem titular, desta feita ao sabor dos tempos, invertendo o protagonismo para comentar, sob o manto do filme de género, a experiência feminina no turbilhão de uma relação abusiva, bem como os efeitos da masculinidade tóxica. Uma irrepreensível interpretação de Elisabeth Moss e uma excelente utilização de espaço negativo para um acumular de tensão nem sempre aliviada por sustos fáceis fazem deste um futuro clássico a não perder.