Vingadores: Endgame
Atenção! Nesta análise houve uma tentativa consciente de evitar revelações que estraguem o prazer a quem ainda não tenha visto o filme. No entanto, podem haver comentários considerados por alguns como spoilers porque é muito difícil fazer uma análise a Vingadores: Endgame evitando completamente os seus acontecimentos. Existem também revelações em relação a outros filmes da Marvel, nomeadamente Vingadores: Guerra do Infinito e Homem-Formiga e a Vespa. Considerem-se avisados e avancem pela leitura por vossa conta e risco.
Para o bem e para o mal, o panorama cinematográfico norte-americano é actualmente dominado por filmes de super-heróis. Se não pela sua importância para a linguagem e estética cinemática pelo menos pela sua capacidade de retorno financeiro. Quando Homem de Ferro estreou em 2008, poucos previram o impacto do seu legado na cultura popular. Com uma gestão cuidada da Marvel, as figuras heróicas foram saltando das páginas das bandas desenhadas, lidas religiosamente por uma perene minoria de leitores dedicados, para o grande-ecrã dos multiplexes, rompendo aos poucos os estigmas de quem anteriormente os encarava como devaneios para jovens pouco populares para se tornarem nomes familiares nos lares de todo o mundo. Capitalizando as personagens das quais a Marvel Studios ainda retinha os direitos cinematográficos, o seu cabecilha, Kevin Feige, foi apresentando em cada filme em nome próprio as estrelas da companhia — Homem de Ferro, Hulk, Thor, Capitão América — para culminar, na recta final do que se convencionou chamar Fase 1 do Universo Cinematográfico Marvel — vulgo MCU —, num épico que juntava todas as personagens num único filme. Os Vingadores convocava a galeria de super-heróis em resposta a uma ameaça intergaláctica de proporções cataclísmicas, e o seu sucesso, delineou de certa forma o template das narrativas dos filmes futuros, constantemente preocupadas em estabelecer enredos para serem retomados e concluídos em títulos posteriores, rendilhando cada vez mais premeditadamente o dito universo, emulando a fórmula primordial da longevidade das bandas desenhadas e fidelidade dos seus leitores.
De fora foram ficando propriedades detidas por outras produtoras. Casos de O Quarteto Fantástico, X-Men, Deadpool ou Homem-Aranha, este último entretanto incorporado na família Marvel através de acordos entre companhias, os outros à partida seguindo dentro de momentos depois da aquisição da 21st Century Fox, empresa mãe da 20th Century Fox, pela Disney, detentora da Marvel Studios. Entretanto, a vertente cinematográfica começou a ditar as regras à banda-desenhada, não só dando origem a ilustrações das personagens a partir da parecença dos actores que as encarnaram, como levando a um desinvestimento na versão impressa de nomes que a Marvel não podia explorar no grande-ecrã, casos dos mencionados Quarteto Fantástico e X-Men. Isto não terá ajudado as vendas e a popularidade dos livros aos quadradinhos que, ironicamente, e apesar do mega-sucesso dos filmes, atingiram números abaixo da média, e em tendência negativa, em 2018. A ironia é maior pela estreia nesse mesmo ano daqueles que são, até hoje, os maiores sucessos financeiros desta saga, Black Panther e Avengers: Infinity War. Este último, o que parece ser a introdução de um fechar de capítulo, foi anunciado em Outubro de 2014 como a parte 1 de um díptico, mais tarde rebaptizado simplesmente como Avengers: Infinity War — com a conclusão a ter o seu título revelado apenas em Dezembro de 2018 como Avengers: Endgame, a estrear em Abril do ano seguinte. Ao leme deste empreendimento épico, em termos de escala e malabarismo narrativo, está a dupla Anthony e Joe Russo, com a ajuda, na escrita do argumento, do duo Christopher Markus e Stephen McFeely. Os irmãos Russo juntaram-se a Markus e McFeely — responsáveis pelo argumento de Capitão América – O Primeiro Vingador — e deram provas com o segundo e terceiros capítulos daquele patriótico herói — O Soldado do Inverno e Guerra Civil —, títulos que, na minha opinião, estão entre os filmes mais interessantes deste universo. Por isso, depois do reinado Joss Whedon ao leme dos Vingadores, foram uma escolha unânime para congregar dez anos de preparação e introdução de personagens na adaptação muito livre das populares séries limitadas da Marvel Comics entre 1991 e 1992, Infinity Gauntlet e Infinity War.
Depois de, em Vingadores: Guerra do Infinito, metade da vida no universo ter sido erradicada por Thanos, os super-heróis remanescentes, com a ajuda da adição recente da Capitão Marvel, procuram-no numa senda de vingança. No entanto, o verdadeiro desafio é conseguir lidar com a incomensurável perda das pessoas amadas e seguir em frente, algo que nem o esforçado optimismo do Capitão América consegue atenuar. Quando Scott Lang, ou seja, o Homem-Formiga, regressa acidentalmente do domínio quântico em que ficou preso no final de Homem-Formiga e a Vespa, pode vir a acender o rastilho de uma ténue esperança de reverter o cataclísmico evento.
Vingadores: Endgame não retoma o ritmo frenético do filme anterior. Ao invés, toma o seu tempo para lidar com as consequências devastadoras da conclusão daquele. Nunca os super-heróis pareceram tão humanos na sua realização de perda e dor. Como seguir em frente? Como encontrar sentido numa vida se não rodeado por aqueles que se amam? Este é um trunfo jogado desde muito cedo na narrativa que injecta as personagens de pathos de uma forma orgânica e que, ao tornar as motivações tão pessoais, incrementa exponencialmente a ligação emocional com o espectador.
A longa duração do filme deve-se novamente à larga galeria de personagens que tem de ser mais uma vez gerida, aqui de forma muito mais elegante que em Guerra do Infinito. Apesar das adições ao elenco – arrisco-me a dizer que até ao final da duração do filme teremos um vislumbre de praticamente todas as principais personagens do MCU dos últimos onze anos –, Vingadores: Endgame é um evento de celebração dos Vingadores originais (pelo menos no que respeita às iteracções cinéfilas) sem comprometer a história que conta. Sem nunca descartar a seriedade e a importância da missão em mãos, os irmãos Russo cozinharam com a dupla de argumentistas um segundo acto que referencia e homenageia um sem número de populares filmes que lidam com deslocações espácio-temporais, especialmente o segundo tomo de uma bem-amada trilogia. Nestas divertidas sequências de eventos, revisitamos, de perspectivas alternativas, cenários e situações nossas conhecidas, ao mesmo tempo que as personagens navegam e confrontam alguns dos seus esqueletos emocionais no armário.
Apesar de previsível, o dispositivo narrativo que faz a história avançar é utilizado com mestria, explorando da melhor forma as dinâmicas entre as várias personagens, recuperando a diversão de ver interagir egos e personalidades tão diferentes, tal como no filme original de Joss Whedon que reuniu a equipa. Além disso, estes vislumbres do passado proporcionam também a reflexão da memória como elemento primordial na constituição e manutenção da nossa humanidade. É esse o confronto principal entre o frio e racional Thanos e os seres-humanos (ou as versões divinas e cósmicas de seres-humanos que, na verdade, constituem os heróis extra-terrestres). Apesar de, matematicamente, o ponto-de-vista do implacável antagonista poder fazer sentido, não é compatível com o milagre e a dádiva singela da existência. É por isso que, neste filme, talvez mais que em qualquer outro da Marvel, as perdas são sentidas profundamente, e a memória de quem desaparece, honrada devidamente.
Inevitavelmente, Vingadores: Endgame tem no seu terceiro acto uma batalha massiva e caótica, pontuada por momentos que, mesmo num visionamento de imprensa, foram recebidos com gritos de alegria e aplausos. A boa notícia é que, ao contrário do que acontece noutros títulos, não se prolonga por demasiado tempo, oferecendo momentos individuais que bastem a outras tantas personagens para todos os envolvidos contribuírem satisfatoriamente, incluindo um momento de celebrado feminismo que se espera não ser apenas um apontamento simbólico, mas sim o marcar de uma nova tendência. Que no final do mesmo visionamento de imprensa se ouvissem críticos adultos a fungar é a prova da eficácia deste filme que se apresenta como o fim de uma era dourada da produção bem oleada da Marvel e, ao invés de acabar com um estrondo, prefere terminar numa nota subtil e humana.
Nem todos os filmes de super-heróis podem ser assim, mas era bom que fossem…
O episódio do podcast do Segundo Take dedicado a Vingadores: Endgame pode ser ouvido aqui.