Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo
No passado dia 7 de Abril, estreou discretamente em 42 ecrãs nacionais Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo, o mais recente filme do par de realizadores conhecido como os Daniels, dupla que se tinha estreado na realização de longas metragens com o peculiar Um Corpo Para Sobreviver, em que Daniel Radcliffe sacudia a personagem de Harry Potter ao interpretar um cadáver. Segundo dados do Instituto do Cinema e do Audiovisual, na primeira semana de exibição, Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo arrecadou apenas 5229 espectadores, o que é manifestamente pouco para um dos filmes mais originais que tenho memória de ter visto nos últimos anos. Porque considero que devia chegar a mais pessoas, e que tem potencial para surpreender positivamente, farei deste texto um serviço público gratuito no sentido de chamar a vossa atenção para esta pequena pérola que está a passar discretamente pelos nossos ecrãs, e que merecia outra atenção. Vou tentar convencer-vos da genialidade deste filme, e aviso desde já: vai-me ser complicado evitar as hipérboles.
Dan Kwan e Daniel Scheinert conheceram-se durante os anos de estudo na Universidade de Emerson, em Boston. Desde 2011, acumularam experiência através da realização de curtas metragens e videoclips. Com a sua surreal comédia-dramática de estreia nas longas, o já mencionado Um Corpo Para Sobreviver, venceram em 2016 o prémio de realização no Festival de Cinema de Sundance. Auto-proclamados realizadores maximalistas, fizeram jus a esse epíteto com Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo, uma produção de Anthony e Joe Russo, os irmãos responsáveis por sucessos da Marvel, incluindo Vingadores: Endgame. Apesar de lidar com o multiverso, felizmente esta comédia de acção e ficção científica é uma história que não deve nada à linha de montagem dos filmes de super-heróis. Ao invés, é um filme radicalmente original que rebenta pelas costuras de ideias, tons e conceitos, encontrando milagrosamente o equilíbrio entre os vários géneros.
Duas décadas depois da internacionalização com 007 - O Amanhã Nunca Morre e O Tigre e o Dragão, Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo dá finalmente o protagonismo à brilhante Michelle Yeoh, permitindo-lhe não só demonstrar os seus dotes nas artes marciais como explorar toda a amplitude da sua capacidade interpretativa no desempenho complexo e tocante de Evelyn Wang. A acompanhá-la, pasmem-se, está Ke Huy Quan como o marido Waymond. Para quem não se lembra, Ke Huy Quan teve os seus 15 minutos de fama como Minorca em Indiana Jones e o Templo Perdido e Data em Os Goonies, tendo desaparecido da face da terra depois disso. Não faço ideia de como é que os Daniels se lembraram deste actor que não trabalhava há praticamente vinte anos, mas ainda bem que o fizeram. A revelação do filme é Stephanie Hsu, como Joy, a filha do casal. O veterano James Hong tem uma presença quase obrigatória, e a grande surpresa no elenco cabe a Jamie Lee Curtis, no papel nada vaidoso de Deirdre, a fiscal dos impostos que persegue o negócio da família.
Adianto-vos, em tradução livre, a sinopse do IMDb, pouco satisfatória, mas isenta de revelações inconvenientes: “Uma envelhecida imigrante chinesa envolve-se numa aventura louca, na qual só ela pode salvar o mundo explorando outros universos ligados às vidas que poderia ter vivido.” Escrito pela dupla de realizadores, este é um filme que bebe nitidamente da experiência de Dan Kwan, ao retratar de forma verosímil a vivência de uma família de imigrantes chineses nos EUA, com as previsíveis barreiras culturais, dificuldades económicas e tradicionais choques geracionais. Com as finanças à perna, através de uma auditoria à lavandaria do casal no centro da trama, a periclitante relação de Evelyn e Waymond vai ser posta à prova pois Waymond planeia apresentar os papéis de divórcio a Evelyn. Os dois têm personalidades muito diferentes, e a sua relação parece estar no fim da corda. A agravar a situação, há um fosso geracional e cultural entre a mãe e a filha já nascida em território norte-americano. Evelyn tolera mas não se conforma com a homossexualidade de Joy, ao mesmo tempo que sofre com a tensão da sua relação com o opressivo pai, o avô da família, ou como se diz na cultura chinesa Gong Gong.
Se isto não parece a descrição de um filme de ficção científica nem de acção e muito menos de comédia, é porque este, positivamente, não é um filme banal nem tradicional. A ficção científica não é mais do que um dispositivo narrativo para uma exploração visualmente deslumbrante dos caminhos não tomados e das vidas não vividas, temas universais exacerbados neste caso pela especificidade da experiência sino-americana. E, com a entrada em cena deste dispositivo, o que temos é um filme alucinante e fragmentado, com cenas a decorrerem simultaneamente em diferentes universos e realidades, nas quais Evelyn contempla o que podia ter sido a sua vida caso não tivesse aceitado acompanhar Waymond para os EUA, nunca perdendo o foco no elemento humano que centra o filme, apesar da estranheza das realidades alternativas propostas. Por exemplo, numa delas, as personagens têm salsichas no lugar dos dedos das mãos. Aliás, sem querer estragar as surpresas, adianto apenas que o vilão e as suas motivações servem como uma apontada metáfora temática com pontos de contacto com outro sucesso de 2022: Turning Red: Estranhamente Vermelho.
Portanto, e sei que isto é difícil de acreditar, Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo funciona como um cruzamento do cyberpunk de Matrix com o existencialismo dos filmes de Charlie Kaufman, duas coisas que em teoria não se deveriam misturar. Pelo meio da loucura, Evelyn confronta-se com as infinitas possibilidades da sua vida ao testemunhar as ramificações das suas variadas decisões. O irónico, é que o que a torna na candidata prefeita para ser a salvadora do universo é ter fracassado em inúmeros aspectos da sua vida. Será que teria tido sucesso se não tem imigrado para os EUA? E poderia ter tido uma carreira como cantora? Ou vivido um romance idealizado com uma versão mais refinada de Waymond? Poderia ter mantido a sua relação com o pai se não tem ido contra a sua vontade? A que realmente dá Evelyn valor na sua vida? Ou será até que nada disto importa? Estas e outras questões são exploradas de formas originais e inventivas, incluindo, para acrescentar ao ramalhete, um falso final por via de um filme dentro do filme. Desculpem se consideram isto um spoiler, mas prometo que não revelo mais nada além disto.
Os Daniels bem avisaram: isto é cinema maximalista. Tudo e mais um par de botas. O espantoso é o tudo e o par de botas funcionarem. Mesmo as ideias mais fora da caixa são encenadas com clareza e objectividade, funcionando perfeitamente de acordo com o plano dos seus visionários autores. Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo é um milagre de edição, a espaços uma experiência sensorial, com efeitos especiais lo-fi a disfarçarem o seu orçamento nada milionário, e com momentos de deslumbramento, surrealismo, sentido de humor hilariante, intimidade tocante e espectaculares lutas de artes marciais. É também um filme embrenhado em cinefilia, referenciando extensamente filmes tão díspares como a animação da Pixar Ratatui, a obra-prima de Wong Kar-Wai Disponível Para Amar ou mesmo o seminal O Tigre e o Dragão.
Uma última nota para a banda sonora da autoria da banda experimental Son Lux, com o seu som post-rock a ter um papel fundamental na criação do ambiente e no embalo onírico de muitas sequências, especialmente na segunda metade do filme. Como cereja no topo do bolo, somos brindados no genérico final com This Is a Life, colaboração entre Son Lux, a sensação indie Mitski e o conceituado veterano David Byrne.
Terminado Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo fica a dúvida. Ver imediatamente este filme outra vez ou dar uma oportunidade a Um Corpo Para Sobreviver? À data de estreia, toda a conversa que rodeou o cadáver flatulento não lhe fizeram favor nenhum, mas à luz do novo filme da dupla, dá que pensar o que terão os Daniel cozinhado naquele caldeirão. Em suma, o que é que ainda estás a fazer desse lado? Larga tudo e corre ao cinema mais próximo para te deixares embrenhar por Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo. E não te preocupes… agradeces-me depois.