Rescaldo dos Óscares 2022
Nesta era de abundância e velocidade, falar dos Óscares uma semana depois da cerimónia, parece uma conversa sobre o passado longínquo. Muito embora tenha apontado muitas vezes anteriormente a irrelevância artística das premiações, é inegável que os Óscares ainda refletem o estado de espírito de uma das maiores indústrias cinematográficas a nível mundial. Além disso, são um espelho da realidade dessa mesma indústria numa fase de transformação na sequência do crescimento dos serviços de streaming e do abalo dado pela pandemia do COVID-19 às salas de cinema.
Pela primeira vez na história dos prémios, o galardão máximo, que premeia o Melhor Filme, foi para um filme distribuído numa plataforma de streaming. E, surpresa das surpresas, não foi para a Netflix, apesar dos esforços já há vários anos, mas sim para a novata Apple TV+. No Ritmo do Coração tinha sido um sucesso na edição do ano passado do Festival de Cinema de Sundance, tendo sido adquirido pela Apple TV+ por um valor recorde de 25 milhões de dólares. Nitidamente, a aposta da Apple deu frutos, e, depois de uma ilustre carreira por festivais, as vitórias nos prémios que antecipam os Óscares, incluindo os principais sindicatos da indústria americana — dos Actores, dos Argumentistas e dos Realizadores —, bem como na Associação de Críticos de Hollywood, deram fortes indícios da possibilidade da surpresa que veio mesmo a acontecer.
Bem, se olharmos as tendências de voto dos membros da Academia nos últimos anos, percebemos que não foi uma surpresa assim tão grande. Com algumas excepções, os vencedores do Óscar de Melhor Filme — como O Caso Spotlight, Moonlight, Green Book - Um Guia Para a Vida, e mesmo Parasitas, por exemplo — têm sido títulos de grande impacto social, expondo injustiças ou apelando à inclusão, com maior ou menor subtileza, sendo que estes elementos sobrepuseram-se em alguns dos casos aos méritos artísticos das obras. Além disso, já lá vai o tempo em que o Óscar para Melhor Realização ditava automaticamente o Óscar para Melhor Filme, por isso nem essa divisão foi surpreendente. Fico muito contente por ver o trabalho de Jane Campion recompensado, neste caso por O Poder do Cão, a grande aposta da Netflix, e um excelente filme que analisei no princípio do ano no episódio 311. Espero que tenha sido este o ponto de viragem para que se deixe de apontar o género ao vencedor do Óscar para a realização. (Espero também que isto aconteça pelas razões certas, e não por ser ofuscado por fait divers que não interessam a ninguém.)
Voltemos ao grande vencedor da noite, escrito e realizado por Sian Heder com base no filme francês de 2014 A Família Bélier. O melhor que se pode dizer de No Ritmo do Coração é que é um filme simpático. Muito embora isto pareça uma crítica, a minha intenção é que seja um elogio. Sei de pessoas que se sentem ofendidas pelo filme, e alguns membros da comunidade de surdos não consideram que a sua condição seja retratada à melhor luz no mesmo, mas não partilho estes sentimentos. As interpretações são excelentes a todos os níveis — e parabéns a Troy Kotsur, pelo Óscar para Melhor Actor Secundário —, e as suas intenções parecem genuínas e bem intencionadas. O problema é que se trata de um filme formulaico e pedestre na sua escrita e execução.
É por isso que me surpreende mais a vitória de Sian Heder para o Melhor Argumento Adaptado do que propriamente para Melhor Filme. Normalmente, os vencedores na categoria de escrita reflectem uma tendência dos membros da Academia para premiarem filmes originais com vincada visão artística. É certo que ainda não vi Belfast, que valeu o Óscar para Melhor Argumento Original a Kenneth Branagh, mas pelo que tenho lido e ouvido, e daquilo que pude ver em No Ritmo do Coração, parece-me que os dois vencedores deste ano escreveram guiões bem comportados e alinhados com os gostos e expectativas dos votantes. Só em No Ritmo do Coração, por exemplo, contam-se três montagens nos seus 111 minutos de duração, o que por si só deveria ser considerado um qualquer tipo de batota ilegal.
Sobre as restantes categorias de interpretação não me posso pronunciar: não vi West Side Story, King Richard: Para Além do Jogo ou Os Olhos de Tammy Faye. Sobre Ariana DeBose, em West Side Story, os elogios parecem ser unanimes. Sobre Jessica Chastain, a estrela de Os Olhos de Tammy Faye, o meu único comentário é que, depois de ver o trailer, não me sinto com coragem para me sujeitar ao filme. Nada contra Jessica Chastain (antes pelo contrário), Andrew Garfield ou o realizador Michael Showalter. O obstáculo que não consigo superar é a caracterização. Só pelo que é possível vislumbrar no trailer, não admira a vitória de Chastain: esta é por certo uma daquelas interpretações transformadoras que a Academia adora, recriando uma personagem da vida real. Mas a caracterização — que incrivelmente também arrecadou o Óscar — parece-me demasiado caricatural para me abstrair devidamente e deixar envolver pelo filme. Curiosamente, tivemos este ano na mesma série televisiva dois exemplos no extremo oposto do espectro no que respeita à qualidade da caracterização. Em Pam & Tommy, tanto Lily James como Sebastian Stan nada têm que ver com as pessoas da vida real que retratavam, Pamela Anderson e Tommy Lee, no entanto as suas transformações físicas eram devidamente subtis e perfeitamente verosímeis. Já Jay Leno, interpretado na série por Adam Ray, era uma caricatura medonha ao nível do que se vê no trailer de Tammy Faye.
No que respeita ao Melhor Filme Internacional, categoria cada vez mais com intersecções à categoria de Melhor Filme, o aclamado filme japonês Conduz o Meu Carro de Ryûsuke Hamaguchi arrecadou sem surpresas o prémio, consagrando o trabalho do realizador que também tinha sido surpreendentemente nomeado pela sua direcção. Isto num ano em que a concorrência era feroz, tanto de A Pior Pessoa do Mundo, realizado pelo norueguês Joachim Trier, como de Flee - A Fuga, filme do dinamarquês Jonas Poher Rasmussen que tinha conseguido a proeza de ser nomeado para Filme Internacional, Filme de Animação e Documentário, tendo acabado por sair da cerimónia de mãos a abanar. O Óscar para a Melhor Animação caberia ao sucesso da Disney Encanto, e, apesar deste resultado inesperado no que respeita às aspirações de Flee, não nos podemos queixar da escolha da Academia na categoria de Melhor Documentário, com a vitória de Summer of Soul (...Ou, Quando A Revolução Não Pôde Ser Televisionada). Este extraordinário filme de Questlove, o célebre baterista da banda The Roots, recupera imagens do Festival Cultural do Harlem, ocorrido naquele bairro nova-iorquino no Verão de 1969. Este festival musical de entrada gratuita que durante vários fins-de-semana, em paralelo com Woodstock e com a chegada do Homem à Lua, celebrou música e artistas afro-americanos tinha ficado algo esquecido nas brumas da memória, tendo sido agora recuperado através de imagens que ficaram na gaveta por mais de meio século. Por entre lendárias actuações de nomes como Stevie Wonder, Mahalia Jackson, Nina Simone, Gladys Knight & the Pips, Mavis Staples ou Sly and the Family Stone, para citar apenas alguns, Questlove captura o espírito da época, dando o devido enquadramento social da luta da comunidade negra à data, e fazendo ponte com o presente ao apresentar as imagens dos concertos a participantes do festival, reavivando-lhes a lembrança daquele acontecimento mítico praticamente desaparecido das suas memórias.
Se Duna, de Denis Villeneuve, desiludiu quando finalmente chegou o ano passado aos grandes ecrãs, não foi certamente por culpa das suas irrepreensíveis equipas técnicas, e os seis Óscares que levaram para casa são uma prova disso mesmo. Melhor Fotografia, Edição, Som, Efeitos Visuais, Desenho de Produção e Banda Sonora. Já lá vai tempo em que uma razia destas indicava uma rampa de lançamento para os prémios ditos artísticos. Dos técnicos, só ficou mesmo a faltar Caracterização, atribuído a Os Olhos de Tammy Faye, como já tinha referido, e Guarda-Roupa, arrecadado por mais uma produção da Disney, neste caso Cruella, prequela de carne e osso do clássico da animação 101 Dálmatas, com Emma Stone a encabeçar uma narrativa situada no mundo da moda.
Bom, voltando a Duna, o meu único lamento vai para a vitória de Hans Zimmer. Atenção, sempre fui um fã de Hans Zimmer, e reconheço a sua importância no panorama musical das bandas sonoras da actualidade. Mas o seu trabalho em Duna, embora épico, parece revelar um beco sem saída em que o compositor se encurralou, transformado numa caricatura de si próprio. Compare-se com as subtilezas de Jonny Greenwood transformadas em composições de excepção para O Poder do Cão, resultado de uma continuada inovação sonora e consistente adequação temática aos filmes para os quais compõe. Afastado das nomeações no passado por questões técnicas, parece-me apenas uma questão de tempo até ao inevitável Óscar para Jonny Greenwood. Resta saber se será por um filme de Paul Thomas Anderson, o seu mais frequente colaborador, ou outro autor atento ao seu talento.
O que nos traz aos meus favoritos pessoais. Na verdade, gostaria de falar apenas sobre um filme. Dos poucos que vi o ano passado, e que constam deste lote de nomeados, o meu favorito foi indubitavelmente Licorice Pizza. Falei deste filme neste programa, por isso se quiserem saber a minha opinião podem procurar o episódio 310. Obviamente, dado o meu apreço pelo universo e pelas personagens deste filme, sinto as ausências nas listas de nomeados de Cooper Hoffman, Alana Haim e Bradley Cooper. E, obviamente, que me parece um engano Licorice Pizza não ter ganho nenhuma das suas três nomeações — para Melhor Filme, Realização e Argumento Original, com especial destaque para esta última. Mas lá está, não vi Belfast, e quem me garante que não está ali uma obra prima da escrita para cinema? Paul Thomas Anderson já leva 11 nomeações em 24 anos, sem uma única vitória, o que por si só parece estranho. No entanto, Alfred Hitchcok, Orson Welles ou Sidney Lumet, por exemplo, também nunca ganharam nenhum Óscar, o que quer dizer que Paul Thomas Anderson deve andar a fazer alguma coisa bem feita.
Entretanto, parece que houve por lá uma escaramuça, mas muito se escreveu sobre ela na passada semana, e além disso esse assunto não me interessa para nada. Por isso a minha última nota vai para a vitória de Billie Eilish e Finneas O’Connell pela canção de abertura do mais recente James Bond, No Time to Die. Desde Skyfall, esta tem sido uma nova tradição: cada novo filme do agente secreto mais popular da história do cinema leva para casa o Óscar para a Melhor Canção Original. Sei que não será muito popular junto de alguns círculos, mas se querem a minha opinião honesta, neste caso em particular, a Academia acertou em cheio.
Para a lista completa de vencedores, seguir esta ligação.