Rogue One: O rescaldo
Rogue One, estreado no passado Dezembro, é o primeiro spin-off sob a bandeira Uma História Star Wars que pretende contar histórias isoladas passadas no universo da família Skywalker. Este texto compila a antecipação ao filme, bem como a crítica ao mesmo, publicadas originalmente na Take Cinema Magazine entre os dias 9 e 15 de dezembro de 2016 com os títulos Antecipação Rogue One e Rogue One: Uma História Star Wars e que podem ser lidos na íntegra aqui e aqui.
Há muito tempo atrás…
Quando Star Wars estreou em Portugal, em Dezembro de 1977, com o título A Guerra das Estrelas, ainda não tinha completado um ano de idade. Alguém me levou em 1983 ao antigo cinema Miramar no Pão de Açúcar de Cascais para ver O Regresso de Jedi. Não tenho a certeza de ter conhecimento prévio da saga mas bastou esta sessão para me converter imediatamente num fã incondicional. Além da meia dúzia de bonecos – não havia dinheiro para extravagâncias como a X-Wing ou a Falcão Milenário – entretanto perdidas no labirinto do tempo, ofereceram-me também o livro com a adaptação do filme de James Khan, número 1 da coleção Nebula da Europa-América. Este livro cedo definiu o rumo das minhas opções pessoais. Enquanto os meus colegas da quarta classe corriam atrás de uma bola no campo pelado da escola, eu ocupava o tempo livre do recreio grande sentado no chão a ler as aventuras de Luke, Leia e Han, na companhia de R2-D2 e C-3PO, no combate às forças do mal encabeçadas pelo sinistro Imperador e pelo trágico Darth Vader.
O facto de O Regresso de Jedi ser o capítulo VI de uma saga, fazia disparar a imaginação pelas possibilidades do vasto universo desenhado por George Lucas, bem como a especulação, normalmente propagada por chicos espertos de língua solta nas acesas discussões no recreio da escola. Antes de descobrir A Guerra das Estrelas e O Império Contra-Ataca, por esta ordem, em retalhadas edições pan & scan no formato 4:3, engolia fascinado escandalosas histórias contadas por seres tocados pela sorte que, alegadamente, já tinham visto os restantes filmes. Uma que sempre ficou comigo descrevia como o imperador, numa suposta tensa e violenta cena, ligava um sabre de luz diretamente sobre o estômago de uma infortunada e desamparada vítima. Além destes relatos apócrifos naturalmente ausente dos filmes, quando finalmente os vi, floresciam também mil e uma teorias sobre a verdadeira dimensão desta epopeia espacial. Acredito que houve dois pormenores essenciais na imortalização do Star Wars, além da óbvia qualidade do universo, personagens e aventuras. Um foi a singela frase de abertura: “Há muito tempo atrás, numa galáxia muito longínqua…”. A outra foi a numeração de A Guerra das Estrelas, na sua reposição em antecipação ao filme seguinte, como “Episódio IV”. Não só conferiu à saga um elemento mitológico, como prometeu histórias anteriores e, possivelmente, infindáveis histórias posteriores. A perspetiva da existência de todo um espólio histórico por explorar incendiou como caruma em dia de verão a inflamável veia criativa de todos os fãs da trilogia. Com o passar dos anos a verdade sobre a existência de outras histórias já escritas por George Lucas, ou mesmo rascunhos, era uma entidade mutável e o próprio autor foi-se contradizendo sucessivamente. Havia planos para nove capítulos. Ou seriam doze capítulos? A saga estava inteiramente alinhavada. Ou eram só umas ideias base? Estes mitos foram sendo alimentados pelo facto do argumento original para A Guerra das Estrelas ter sido um parto difícil e ter passado por inúmeras iterações e versões. A verdade é que Lucas foi inventando a história pelo caminho, transformando um serial de aventuras fantásticas de ficção-científica numa saga trágica da família Skywalker. Muitos elementos e relações entre as personagens não estavam no texto original – nem no subtexto – mas qualquer inconsistência que possam ter introduzido na narrativa global foram compensadas pelos níveis de complexidade e profundidade dramática conseguidos.
Por mais de uma década, desde o fim de O Regresso de Jedi, fomos sendo invadidos por uma crescente frustração pela tomada de consciência da possibilidade de nunca mais vermos um filme do Star Wars, A trilogia não só se cristalizou na história cinéfila do século XX como contribuiu para o atual vocabulário cultural com conceitos como a “Ordem Jedi”, a “Força”, e o “Lado do Mal”. Apesar disto, durante esta época de trevas, nós, os verdadeiros crentes, eramos uma multidão silenciosa, conformados e desiludidos pela ausência dos prometidos episódios, gastando lentamente as nossas cópias em VHS gravadas religiosamente de uma qualquer transmissão televisiva.
As edições especiais e as prequelas
Olhando em retrospetiva apenas catorze anos separam O Regresso de Jedi das edições especiais da trilogia original. Quando estas foram anunciadas em 1997 o universo Star Wars voltou a abrir-se, e com ele uma infindável panóplia de possibilidades. Iriamos poder ver (ou rever) os três filmes – A Guerra das Estrelas, O Império Contra-Ataca e o Regresso de Jedi – nas salas de cinema com efeitos especiais melhorados e até cenas nunca antes vistas. Além disso, e ainda mais promissor, era o facto de estas edições especiais serem o prenúncio para novos filmes. Assim foi prometida uma nova trilogia, a estrear em 1999, que popularizou o termo prequela, e que contaria a história da transformação de Anakin Skywalker, pai de Luke e Leia, na sinistra figura Darth Vader. Agora é fácil pensar neste entusiasmo como ingénuo mas na altura era impossível não ficar expectante e entusiasmado com a perspetiva de mais Star Wars. Isto para além dos livros do universo expandido – na sua maioria não canónicos – e jogos de computador que iam saciando parcamente as necessidades dos fãs mais ardentes. Afinal as edições especiais estavam a ser supervisionados pelo criador da saga e serviriam como prova de conceito para a produção dos três novos filmes a serem escritos e realizados pelo próprio Gerorge Lucas. O que poderia correr mal?
Bom, já muita tinta se gastou acerca das opções de Lucas daqui em diante. A começar pela interminável lista de ajustes, correções e “melhoramentos” – entre aspas e com muita ironia – nos filmes da trilogia original, praticamente em cada nova edição em DVD ou BluRay, e em constante atitude revisionista para limar retroativamente arestas narrativas deixadas pelas prequelas. Ao ponto de renegar as versões originais dos filmes, sem nunca os remasterizar e apenas os disponibilizando como extras de qualidade standard numa edição de colecionador em DVD. Quem leu o excelente livro The Making of Star Wars, de J.W. Rinzler, sabe que Lucas é um perfecionista eternamente insatisfeito, passando os primeiros dias após a estreia de A Guerra das Estrelas em Maio de 1977 a melhor a mistura dos efeitos sonoros para a distribuição internacional. Mas enquanto que a produção deste filme foi uma luta, tanto com os financiadores, como com os elementos naturais, e os restantes dois tiveram realização de terceiros – Irvin Kershner realizou O Império Contra-Ataca e Richard Marquand realizou O Regresso de Jedi – que questionaram Lucas criativamente – especialmente Kershner naquele que é normalmente considerado o melhor filme de toda a franchise – as edições especiais, e mais tarde as prequelas, foram obra de um autor com um tal estatuto que não deve ter ouvido muitos “nãos” das pessoas com quem colaborou. Lucas tinha criado todo o universo inteiramente sozinho: quem melhor que ele para liderar tal empreendimento? Além disso tenho a convicção que escrever uma prequela é um exercício constrangido à partida pela necessidade de ligar a narrativa que se está a desenhar com os factos que já foram estabelecidos previamente, limitando a criatividade que normalmente se tem quando se escreve uma história original.
Falar mal dos episódios I a III não é uma questão de moda ou pretensão. A cada estreia de um novo capítulo tinha de me convencer a mim próprio que o filme tinha as suas virtudes e que, mesmo não correspondendo às expectativas, faziam parte de uma boa trilogia encerrada em si própria. Sempre a senti afastada da original, não só temporalmente, mas também na textura dos seus universos que nunca ligaram perfeitamente, na minha opinião. Lucas sempre forçou uma suposta consistência entre os dois grupos de filmes através das suas revisões, o que contribui para o aumentar do ressentimento. E depois há outro problema: a longevidade dos filmes. Quanto mais se revêm, mais facilmente se desmoronam perante os nossos olhos. Tinha aceite que A Ameaça Fantasma era o pior dos três, com O Ataque dos Clones a ser a entrada assim-assim e A Vingança dos Sith a ser o filme razoavelmente bom do grupo. Acontece que recentemente revi O Ataque dos Clones e não queria acreditar no que estava a ver. O filme envelheceu terrivelmente mal, com a opção de Lucas de filmar quase integralmente em green screen a ser o seu pior defeito. Os efeitos especiais, na vanguarda à data de estreia, estão obviamente datados contribuindo para uma gritante artificialidade que retira vitalidade ao filme. Entretanto este não é ajudado em nenhuma medida pelo óbvio desconforto dos atores com o espaço físico -ou falta dele – que os rodeia e com o diálogo que têm de forçar a sair da boca. Esta experiência, que começou por ser de partilha com a prole, acabou em embaraço convertendo-se num medo profundo de rever A Vingança dos Sith. Mesmo não sendo brilhante, acho que me vou ficar pela memória.
O reinado da Disney
Com o desfecho de Star Wars Episódio III A Vingança dos Sith, em 2005, pensámos assistir ao encerramento oficial da saga. É certo que continuaram a ser produzidos jogos e séries de animação, nomeadamente o Clone Wars, mas esta exploração de conteúdos centrou-se nas narrativas que falharam o recapturar do imaginário dos fãs de longa data. A onda de repercussão do rumo que o Star Wars tinha tomado nas mãos do próprio criador parecia ter encurralado o seu futuro num beco sem saída. Mas em 2012 acontece o inesperado. Julgo que ninguém poderia ter previsto a compra da Lucasfilm pela multimilionária Disney, a juntar ao seu próprio espólio, bem como às subsidiárias Pixar e Marvel. Apesar de ter adquirido os direitos para produzir mais filmes do Star Wars e do Indiana Jones foi na saga galáctica que concentraram imediatamente os esforços de produção anunciando logo à cabeça uma nova trilogia de filmes a continuar a história onde o Episódio VI tinha ficado, bem como a inauguração de uma nova corrente de filmes Star Wars: alternando com os lançamentos dos filmes principais teríamos direito a spin-offs com outras aventuras e personagens no mesmo universo. A isto se designou chamar Star Wars Anthology, mais tarde rebatizado de A Star Wars Story – Uma História Star Wars – do qual Rogue One é a primeira entrada. Contas feitas entre 2015 e 2020 esperam-se seis filmes, no conjunto da Saga Skywalker (designação com direitos de autor) e Uma História Star Wars. Não há fome que não dê em fartura!
No ano passado, por esta altura, era verdadeiramente eletrizante a expectativa sobre o novo capítulo da Saga Skywalker, O Despertar da Força, realizado por JJ Abrams. Comentei, na altura, ser esta a melhor versão possível que se poderia esperar de um novo filme Star Wars. Lucas tinha tentado alargar o âmbito do universo com as suas prequelas, falhando redondamente. Abrams e Lawrence Kasdan, que voltou para a escrita do argumento depois de O Império Contra-Ataca e O Regresso de Jedi, apostaram no familiar e acertaram no alvo, satisfazendo a sede nostálgica dos fãs veteranos e desenhando novos e cativantes personagens para o futuro. O Despertar da Força foi um prelúdio seguro e bem comportado para aquilo que promete ser um verdadeiro épico, dado o envolvimento de uma figura tão entusiasmante como Rian Johnson, um autor original, competente e humanista que promete um episódio VIII de exceção. Para o desfecho da trilogia o nome de Colin Trevorrow, se bem que menos promissor à partida, também faz sentido. Ao fim e ao cabo ofereceu à Universal um dos maiores sucessos comerciais de sempre com Mundo Jurássico. Entretanto, além de Rogue One, já se desenha novo spin-off promissor. Naquele que vai mostrar as aventuras de um jovem Han Solo todas as escolhas têm sido acertadas. A ser realizado pela dupla Phil Lord e Chris Miller, responsáveis por O Filme Lego e 21 Jump Street – Agentes Secundários, contará com o magnético Alden Ehrenreich no papel do jovem pirata do espaço, na companhia do talentoso Donald Glover como Lando Calrissian e de Emilia Clarke, a popular atriz de A Guerra dos Tronos. Não só temos uma estreia no universo Star Wars, com uma icónica personagem principal a ser encarnada por um novo ator, como se antecipa uma mudança de tom, mais leve e cómico, consistente com a personalidade da sua figura central.
O lado negativo destes empreendimentos é a sobre-exposição. Com a promessa de novos filmes todos os anos o merchandising saiu das convenções e caves de colecionadores dedicados, para praticamente todo o lado imaginável. Há Star Wars em roupas de marca, perfumes, produtos de beleza, brinquedos, pastas de dentes, torradeiras, enfim, se alguém o sonhou há um produtocom a marca Star Wars nele estampada. O culto já não existe pois a enxurrada de concessões para a utilização da marca finalmente democratizou a saga e tornou-a aceitável. O que antes podia ser olhado de lado é agora banal: os fãs do Star Wars de todas as idades, para o bem e para o mal, saíram finalmente do armário.
Os novos rebeldes
É com alguma expectativa que chego à semana de estreia de Rogue One. Todas as notícias sobre a sua produção têm sido positivas, apesar dos velhos do restelo que previram a catástrofe a propósito das filmagens adicionais, pratica perfeitamente comum em blockbusters de Hollywood, normalmente previstas, aliás, nos planos de produção. Em primeiro lugar a premissa de Rogue One é perfeita. É uma narrativa isolada e secundária mas de decisiva importância no desfecho de A Guerra das Estrelas original. Da autoria do supervisor de efeitos especiais da ILM (Industrial Light and Magic) John Knoll, foi então desenvolvida por Chris Weitz e Tony Gilroy, reconhecidos e talentosos argumentistas. A escolha de Gareth Edwards também parece inspirada. Monsters – Zona Interdita, a sua estreia de 2010, é um filme de baixo orçamento que demonstra uma atitude DYI própria de jovens cineastas com vontade e motivação para criar, além de revelar um talento para a construção narrativa de momentos de genuína tensão e deslumbramento e um entendimento prematuro da correta gestão dos efeitos especiais. Não vi a sua versão do Godzilla, filme de 2014 que foi tão bem recebido criticamente como mal recebido comercialmente, mas Edwards é definitivamente uma mais valia em potência para a vitalidade desta primeira entrada antológica.
No que respeita ao elenco, entre alguns nomes de referência, como Mads Mikkelsen, Forrest Whitaker, Donnie Yen, Ben Mendelssohn e Alan Tudyk, surge algum do melhor talento emergente da atual, tal como Rihz Amhed, Diego Luna e Felicity Jones, um elenco diversificado que volta a colocar uma heroína em primeiro plano, depois da Rey de O Despertar da Força. Depois, tal como aconteceu com o filme de J.J. Abrams, a máquina promocional tem-se revelado extremamente eficaz, sem um único passo em falso. Tanto no que respeita aos posters – de avanço, final e internacionais – familiares q.b., mas revelando uma nova perspectiva sobre a saga, como no que toca à revelação de imagens e trailers, colocando em destaque a famosa Estrela da Morte, palco central da trama que se adivinha, e revelando aos poucos o segredo mal guardado da presença de uma figura icónica da saga original.
Rogue One tem tudo para ser um sucesso. De certa forma será uma primeira experiência Star Wars irrepetível, abdicando de algumas das características a que estamos habituados. Pela primeira vez temos um filme sem música de John Williams, pois será Michael Giacchino a fornecer a banda sonora original, completando o crossover entre o Star Trek recente e o Star Wars, seguindo as pegadas do seu colaborador habitual Abrams. Será também o primeiro filme sem o icónico texto deslizante do genérico inicial. Adivinha-se uma experiência estranha, no mínimo, ver um filme Star Wars sem estes elementos mas espero sinceramente que qualquer dia nos recordemos desta estreia com nostalgia: “eu estive lá quando o universo Star Wars se expandiu e nos deu mais uma série de fantásticos e históricos filmes para a posteridade”.
Rogue One: a crítica
Jyn Erso vê-se sozinha em tenra idade quando a sua mãe é morta e o seu pai Galen Erso, talentoso engenheiro em fuga do Império Galáctico para quem trabalhava, é recapturado pelo perigoso Director Krennic para colaborar na construção de uma poderosa arma, a base militar Estrela da Morte. Anos mais tarde Jyn é recrutada pela Rebelião contra o império quando estes são contactados por um piloto desertor do Império que alega ter uma mensagem de Galen. Este pode ser o ponto de viragem para conseguirem roubar os planos da Estrela da Morte e encontrar um ponto fraco nesta arma impenetrável. Rogue One, apesar das muitas novidades inerentes ao facto de ser o primeiro spin-off Uma História Star Wars, volta a apostar, tal como O Despertar da Força, na segurança nostálgica da familiaridade. Não só conta com variadíssimas referências aos filmes que o precederam, umas mais óbvias, outras mais obscuras, como repete inesperadamente alguma da fórmula do filme de J.J. Abrams, centrando-se numa heroína abandonada em criança, que se vem a cruzar com um piloto desertor do Império. É verdade que a narrativa de Rogue One não se foca apenas nestas personagens, abrindo o seu elenco a um conjunto heterogéneo de figuras, nem as dinâmicas das relações reproduzem a dinâmica entre Rey e Finn, mas não deixa de ser curioso para um filme que promete abrir portas para o futuro, ainda se olhar tanto para trás.
Rogue One, novamente à imagem do que acontecia em O Despertar da Força, volta a recuperar elementos estéticos e visuais, não só de A Guerra das Estrelas, dada a proximidade cronológica entre as duas histórias, como da arte conceptual, nomeadamente da autoria de Ralph McQuarrie, produzida para aquele filme e não utilizada. Fãs de longa data, consumidores da panóplia de livros sobre a génese e as produções da saga, reconhecerão também elementos criados por George Lucas nas primeiras versões do argumento e mais tarde abandonados, como os cristais “Kyber” e a “Ancient Order of the Whills”. No que respeita aos veículos espaciais há uma recuperação total do que conhecíamos da trilogia original, com algumas variantes subtis que enriquecem o universo sem o deixar irreconhecível, como a U-Wing, por exemplo, ou uma variante de Tie-Fighter de asas achatadas. Há easter eggs para todos os gostos: alguns obscuros, outros que distraem e alguns que acertam no alvo, como a célebre frase “Tenho um mau pressentimento em relação a isto”, aqui interrompida a meio. Mas a linha referencial nem sempre é seguida com equilíbrio e algum do serviço aos fãs descarrila a espaços o empreendimento, sendo que a maior fatia da culpa vai para a recuperação de uma personagem original através de efeitos de computação gráfica. O problema é que a tecnologia ainda não conseguiu que este tipo de personagem humano fosse reproduzido de forma perfeita e permanece um elemento de estranheza – o designado uncanny valey – que marca as cenas em que participa. Além disso ocorrem alguns momentos de continuidade retroativa que endereça questões que nunca foram um real problema, tal como a justificação para o ponto fraco da Estrela da Morte.
Estamos perante um Star Wars diferente do que estamos habituados, e isto é um elogio. Rapidamente somos lançados para um universo que se expande perante os nossos olhos num arranque narrativo frenético que nos apresenta as várias personagens e uma série de lugares novos e exóticos, como Jedha, com a sua cidade a refletir uma pálida imagem de glórias passadas, e mais tarde Scariff, um solarengo planeta com praias tropicais. Mas o maior constrangimento de Rogue One é a falta de desenvolvimento das suas personagens. Quando se pedia alguma profundidade na sua caracterização, Gareth Edwards e os seus argumentistas Chris Weitz e Tony Gilroy, desperdiçam a bagagem emocional que plantaram no prólogo, reduzindo o conjunto de excelentes atores a peões no tabuleiro de xadrez das batalhas que têm de travar. Apenas Felicity Jones tem um conjunto de motivações onde sustentar o seu retrato da Jyn Erso. O restante elenco, apesar dos tons de cinzento com que se define Cassian, interpretado por Diego Luna, ou da relação de fé que Chirrut estabelece com a Força, numa interpretação do especialista de artes marciais Donnie Yen, é privado de motivações, complexidades, quereres ou vontades. Isto torna-se evidente quando a personagem com a personalidade mais vincada, elemento de certeiro alívio cómico, é o robot K-2SO, numa interpretação em performance capture do sempre fiável Alan Tudyk.
Há um elemento propulsivo na narrativa de Rogue One que é satisfatório, de um ponto de vista superficial. As batalhas são um prolongamento moderno do confronto em Hoth, no princípio de O Império Contra-Ataca, e a sequência final é um espelho de Endor, do final de O Regresso de Jedi, sem os Ewoks e sem a carga emocional do confronto de sabres de luz que acompanhávamos nesse filme. Funcionam como um best of do imaginário da saga onde podemos, numa mesma cena, vibrar com confrontos em terra envolvendo AT-ATs, ou no ar, com as X-Wing em foco em perseguições a Tie-Fighters e evitando o fogo da canhões terrestres. Mas o que começa por ser um conjunto de referências à saga original acaba numa ânsia de ligação à narrativa de A Guerra das Estrelas que faz lembrar os erros cometidos por George Lucas nos apressados momentos finais de A Vingança dos Sith. Quando acreditamos presenciar a um ato de coragem ao não se incluir um sabre de luz num filme do Star Wars este finalmente aparece numa cena de tons negros que poderá espantar os mais novos no uso violento de uma popular personagem. Este é, aliás, o filme mais sombrio de toda a saga, tanto pela sua inclinação mais bélica e casualidade perante a morte, como pelo seu desfecho. Michael Giacchino homenageia com a sua composição musical o legado de John Wiliams e, quando entra a triunfante e habitual fanfarra deste na banda sonora no arranque do genérico final, não há como evitar pensar que nunca nenhum filme do Star Wars tinha anteriormente, com as suas virtudes e com os seus muitos defeitos, tratado as suas personagens como meros elementos descartáveis.
Rogue One foi-nos apresentado como uma aventura paralela, com óbvios contactos com a narrativa original, mas contando uma história única e independente. Acontece que a reverência à saga de George Lucas vai além das pontuais referências, estabelecendo mesmo um forte cordão umbilical com aquela que parece o resultado de um compromisso entre esta premissa original e as obrigações comerciais deste novo filão. Nesta altura parecem ter validade os rumores das reais razões para as filmagens adicionais supervisionadas por Tony Gilroy, segundo rezam as crónicas. Há muitos elementos sonoros e visuais nos trailers que antecederam a estreia do filme que não se encontram na sua versão final, o que contribui para a crença que talvez a visão original de Gareth Edwards tenha sido comprometida. A máquina da Disney foi peremptória a negar os rumores mas, apesar de um entretenimento competente, a escassa caracterização das personagens, juntamente com a hesitação em ser algo de realmente novo e diferente, fazem com que Rogue One seja mais um passo ao lado do que um salto em frente.
A Força é apenas assim-assim com este.
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