Laranjas Sangrentas
Não é de espantar o prémio do público arrecadado por Laranjas Sangrentas na edição do ano passado do MOTELX. Escrito a seis mãos pelo próprio realizador, Jean-Christophe Meurisse, em parceria com Yohann Gloaguen e Amélie Philippe, utiliza o cinismo e o humor muito negro como armas disparadas em rajada a várias facetas da moderna sociedade francesa, na qual a violência aparenta ser o único bálsamo apaziguador das desigualdades económicas, da hipocrisia e da injustiça.
Piscando o olho ao cinéma vérité, com momentos imbuídos de verosimilhança, filmados com uma nervosa e irrequieta câmara, e personagens verborreicas a atropelarem-se no digladiar de argumentos a um ritmo alucinante, Laranjas Sangrentas apresenta-se como um mosaico de narrativas díspares que se vão cruzando casualmente, e por vezes de forma totalmente inesperada.
Um casal de reformados endividados deposita as suas esperanças de desafogo económico num concurso de dança que, apesar da sua minúscula dimensão, como se pode ver pelo ginásio e balneário em que o júri se reune, é manipulado em nome dos interesses dos patrocinadores. Um dos seus filhos, um advogado que tenta subir na hierarquia social, vê-se envolvido pelo chefe num caso de evasão fiscal pelo ministro da Economia e das Finanças. Entretanto, tanto o fraudulento ministro como uma adolescente em plena fase de descoberta da sua sexualidade são apanhados casualmente na mira de um predador sexual.
Os mais distraídos poderão encontrar em Laranjas Sangrentas um potpourri de bem-disposta e língua afiada comédia satírica. E, durante grande parte da duração do filme, estarão certos. A grande surpresa acontece quando a fraude, a hipocrisia, a impunidade, a desigualdade social, os sentimentos comezinhos, os pequenos insultos casuais ou as banais demonstrações de chauvinismo são substituídos por inusitada violência gráfica alguns momentos de terror psicológico. Isto, sem nunca perder o sorriso torcido que define o tom desde o primeiro momento.
Jean-Christophe Meurisse pontua a farsa com um cinismo pessimista que não contém o desejo de catarse reaccionária, não poupando, no entanto, nenhuma das suas personagens, independentemente dos seus defeitos ou (parcas) virtudes, a um desfecho trágico e/ou humilhante. Com a excepção da personagem que representa uma certa inocência, agora irrevogavelmente perdida.
Dificilmente Laranjas Sangrentas deixará alguém indiferente. É um filme provocador que tem como objectivo atropelar o politicamente correcto em nome da reflexão social sobre o seu país. E não é por isso que deixa de encontrar eco no público português. Ao fim e ao cabo, as dores da nossa vivência serão assim tão diferentes das dos gauleses?