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Mulher-Maravilha 1984

Mulher-Maravilha 1984

O sucesso da trilogia de O Cavaleiro das Trevas de Cristopher Nolan, adaptação de uma das figuras de proa da DC Comics, abriu a porta para o milionário universo cinematográfico da rival Marvel. Ao tentar perseguir a fórmula numa tentativa de recuperar o tempo e os dólares perdidos, a Warner Bros. colocou o destino da DC Extended Universe nas mãos de Zack Snyder, cineasta que parece ter aprendido todas as lições erradas de Nolan. Apesar dos sucessos financeiros, fizeram-se ouvir intermináveis queixumes de fãs e inúmeros lamentos da crítica. Até que, em 2017, um filme protagonizado uma super-heroína, encarnada por Gal Gadot, e realizado por uma mulher, Paty Jenkins, uniu em uníssono fãs e críticos num coro de elogios vindicado pelos resultados na bilheteira. E se ainda havemos de alcançar um tempo e um lugar em que será desnecessário mencionar o género dos autores e intérpretes dos filmes, o sucesso presente de Mulher-Maravilha foi um marco importante para lá chegarmos, mais do que as suas qualidades que, convenhamos, não transcendiam as limitações estéticas e narrativas destas adaptações das vinhetas das bandas-desenhadas ao grande-ecrã.

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Chegados a 2020, um ano que mais parece o resultado de um plano maquiavélico de um vilão da banda-desenhada, e colocando desde já de lado discussões sobre o modelo de lançamento do filme simultaneamente nos cinemas e no serviço de streaming HBO Max (nos EUA), estreia a inevitável sequela, repetindo os trunfos do primeiro filme à frente e atrás das câmaras. Mulher-Maravilha 1984 promove imediatamente no título um deslocamento temporal em relação à acção da Primeira Guerra Mundial do filme anterior, assumindo desde logo o imorredoiro fascínio pela década de 1980 que tantos frutos tem dado recentemente em títulos como Stranger Things (na televisão) ou Ready Player One - Jogador 1 (no cinema). É precisamente em 1984 que Diana Prince, que não envelheceu um dia em décadas, tem a oportunidade de ver cumprido o seu desejo impossível de se reencontrar com Steve Trevor (Chris Pine), cuja perda nunca ultrapassou verdadeiramente. No entanto, como cedo aprendeu, apenas a verdade importa para se ser um verdadeiro herói, e quando o McGuffin mágico cai nas mãos erradas de Barbara Minerva (Kristen Wiig) e Maxwell Lord (Pedro Pascal), o alter-ego de Diana tem de entrar em acção.

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Desde o colorido cartaz até ao divertido trailer, o cenário dos anos oitenta prometia nostalgia e humor, numa tendência para contrariar o negrume do universo dos comparsas masculinos de Mulher-Maravilha. Não obstante, as potencialidades deste conceito acabam desperdiçadas, exceptuando o óbvio aproveitamento da filosofia de Gordon Gekko de que "a ganância é uma coisa boa" – a quem escapa a referência, recomendo a descoberta de Wall Street, filme de 1987 realizado por Oliver Stone – e o superficial enquadramento geopolítico da Guerra-Fria que parece mais interessado em comentar ansiedades e preocupações da realidade actual do que minar o contexto da altura. Este é, na verdade, um dos calcanhares de Aquiles desta sequela (herdada, é certo, do primeiro filme): a necessidade de pregar ao espectador, aqui assumindo proporções embaraçosas e quase literais. É salutar a utilização de um veículo cultural desta natureza para comentar sobre o sexismo, o capitalismo desenfreado e o espírito bélico da natureza humana em geral, promovendo ao invés valores positivos e inspiradores. Porém, Mulher-Maravilha 1984 executa as suas ideias com uma tal mão pesada que invalida as suas melhores intenções.

Pela positiva, a juntar-se novamente à atlética Gal Gadot e ao carismático Chris Pine, Pedro Pascal e Kristen Wiig divertem-se na composição de vilões de antologia. Se a narrativa custa a pegar, com um longo prólogo e um primeiro acto demasiado enredado no seu enredo (trocadilho perfeitamente intencional), quando pega, oferece-nos algumas cenas de acção vistosas e bem executadas, com o envolvimento emocional a cargo da entrega dos excelentes intérpretes. Se Pascal sabe exactamente em que filme está, divertindo-se (e divertindo-nos) com Maxwell Lord a dar enormes trincas ao cenário, é um prazer assistir a Wiig emprestando o seu charme despretensioso e nervoso a Barbara Minerva, transmutando-se progressivamente numa femme fatale em pleno domínio da sua auto-estima, e finalmente na vilã à altura da heroína The Cheetah, duas personagens herdadas das páginas aos quadradinhos. Se se conseguir ignorar a frágil escrita que justifica o retorno de Steve Trevor (e em que assenta toda a premissa do filme), é fácil perceber a vontade de trazer de volta Chris Pine para contracenar com Gadot. Não só o par dá continuidade à química a que tinhamos testemunhado no filme anterior, como há toda uma leveza nas cenas em que Pine participa, lamentando-se apenas a mecânica da narrativa que nos deixa a  desejar ter tido mais tempo da sua companhia.

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Em suma, as qualidades de Mulher-Maravilha 1984 são anuladas, não por uma qualquer incompetência ou falha técnica, mas pelas próprias limitações do género a que pertence, a começar no argumento – aqui escrito a seis mãos pela própria Patty Jenkins em colaboração com Geoff Johns e Dave Callaham. Um filme de super-heróis de sucesso, seja ele Marvel ou DC Comics, não pode escapar muito à fórmula que obriga a um intrincado enredo, recheado de mitologia reconhecível e referências às páginas das bandas desenhadas que o precedeu, preferencialmente escalando conflitos pessoais para uma ameaça à escala global, e a uma boa dose de acção, culminando inevitavelmente num frenético embate de píxeis musicados de forma caotica pelo inevitável Hans Zimmer ou fiel discípulo – neste caso, apesar das promessas, voltou a ser o mestre. Por estas medidas, este será um sucesso de bilheteira (ou de visualizações em streaming ou de descarregamentos ilegais). Infelizmente, o Cinema, aqui, acaba por ser acidental. E, desejando sinceramente que caminhemos para uma condição de igualdade de oportunidades, Mulher-Maravilha 1984 é uma demonstração cabal de que não fazem sentido distinções de género, pois a mediocridade, tal como o génio, está ao alcance de qualquer um, independentemente dos cromossomas.

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