Uma viagem pela filmografia de Christopher Nolan - O "ranking"
Podem ler a introdução a este ranking aqui.
1. Memento (2000)
Volvidas duas décadas, a obra que revelou Christopher Nolan ao mundo continua a ser ao mesmo tempo uma excitante e bem sucedida experiência formal e a súmula perfeita da fórmula Nolan em perfeito funcionamento. Assente numa extraordinária interpretação de Guy Pearce, como o dilacerado Leonard Shelby, incapaz de consolidar memórias recentes totalmente enredado numa senda para vingar a morte da mulher — o último acontecimento de que se lembra —, Memento exterioriza o caos da mente do seu protagonista através de uma complexa estrutura que alterna acções em diferentes progressões cronológicas — logo aqui, o tempo como elemento maleável do seu cinema, no entanto servindo um propósito temático, pois Shelby não consegue progredir: a sua memória volta sempre ao passado, ao momento do seu trauma.
É certo que a complexidade é relativa — em repetidas visualizações tudo se revela — e as sequências a preto-e-branco são a (necessária?) estrutura sólida em que toda a premissa assenta, mas é inegável a precisão da construção de uma história que se vai revelando surpreendente a cada cena para, no final, se revelar, reflectindo a própria técnica narrativa, uma infindável tragédia em loop fechado.
2. O Terceiro Passo (2006)
Em O Terceiro Passo, Christopher Nolan adaptou um complexo livro de forma cerebral e clínica que, tematicamente, encaixava que nem uma luva no seu registo. O confronto entre dois mágicos rivais era encenado por um mestre do artifício e da manipulação. Visualmente deslumbrante, a narrativa, no entanto, não evita deixar um amargo de boca pela batota da utilização do sobrenatural numa história que parecia ser um tratado sobre a arte da ilusão. Além disso a sua estrutura assente na leitura de diários, herança da fonte literária, disfarçava o maior calcanhar de Aquiles do seu autor. Nolan define as regras dos seus universos e desenha a mecânica das suas narrativas como um competente e rigoroso engenheiro. O seu cinema é feito de enigmas mas não contém nenhum tipo de ambiguidades. Nolan vai explicar-nos pela voz das suas personagens exatamente como tudo funciona na introdução, durante o desenvolvimento e mesmo na ação climática dos seus filmes. De tal forma que, mais que personagens, as pessoas que habitam os seus filmes acabam por ser mais símbolos que funcionam como veículos de exposição.
Ainda assim, o revelador levantar da cortina que revelou Nolan como um “feiticeiro de Oz” ao comando de elaboradas ilusões não foi suficiente para minar este elegante exercício narrativo assente em superlativas interpretações e surpreendentes revelações a cada esquina.
3. O Cavaleiro das Trevas (2008)
O Cavaleiro das Trevas foi o ponto alto da trilogia da autoria de Christopher Nolan dedicada ao Homem-Morcego. Foi também um marco no que respeita a adaptações de bandas-desenhadas ao grande-ecrã, com um equilíbrio perfeito entre a acção, a mitologia da personagem e a ambição dramática de um policial adulto, a fazer lembrar um qualquer drama policial saído da Nova Hollywood da década de setenta. Saindo da artificialidade dos cenários de filmagens para as ruas de Chicago, o que se perdeu em consistência e ambiente fantasista da visão apresentada em Batman - O Início, ganhou-se em realismo e aspereza. Central ao sucesso megalómano de O Cavaleiro das Trevas foi indubitavelmente a prestação de Heath Ledger, mitificada e premiada postumamente, como o reverso da medalha do herói mascarado, numa narrativa — apontada por muitos de ser inchada e algo desregrada — que não resiste a sublinhar a grosso as suas preocupações temáticas com a introdução tardia do vilão Duas-Caras.
Pode não estar aqui a adaptação mais fiel ao espírito das páginas aos quadradinhos, mas este é, sem sombra de dúvidas, um filme marcante e um marco que redefiniu (para o bem e para o mal) o panorama do cinema norte-americano.
4. Dunquerque (2017)
O "filme de guerra" de Nolan, ainda assim sob o signo da manipulação temporal. Três linhas narrativas — em terra, no mar e no ar —, separadas no tempo da acção — uma semana, um dia e uma hora —, contadas em paralelo pela magia do cinema, capaz de estender e comprimir o tempo para intensificação do impacto emocional. Apesar do gimmick, tudo nesta história que recria a dramática evacuação de soldados da cidade do título para Inglaterra, durante a Segunda Guerra Mundial, se resume à urgência, ao perigo iminente e crescente com o acumular dos minutos, das horas e dos dias. Dunquerque, filmado em 70 mm IMAX, e melhor apreciado numa grande tela, é sensorial e visceral; o horror da guerra feito espectáculo cinematográfico, não glorificando a barbárie do conflito, mas fincando o pé ao lado de homens normais que, quando lançados em circunstâncias extraordinárias, são capazes das mais incríveis façanhas em nome da sobrevivência.
A contribuir para a urgência e tensão, pode-se contar mais uma excelente composição de Hans Zimmer, incorporando na cadência da música o pendular ritmo do relógio, encapsulando assim, também na manta sonora, o tema central do filme.
5. Inception - A Origem (2010)
Inception é o resultado da carta-branca dada pela Warner Bros. após o fenómeno mundial de bilheteira e crítica de O Cavaleiro das Trevas (2008). E é inegável a capacidade de deslumbramento ao primeiro contacto. Um blockbuster com cérebro e coragem de ser original, brincando com a mecânica e a percepção do tempo num heist movie em que o banco é transformado pelos sonhos. No entanto, Inception encerra em si mesmo o contrasenso de todo o cinema de Christopher Nolan. Os seus filmes são como refinados relógios suíços, rigorosos e infalíveis na sua mecânica. Mas para funcionarem, Nolan trai a máxima do cinema: mostra, não contes. Os diálogos são reduzidos a exposição para que o espectador não fique perdido, e mesmo as personagens não têm vida para lá do seu papel na trama imediata, reproduzindo novamente lugares-comuns caros ao realizador, como é o exemplo da morte da mulher do protagonista como catalisador das suas acções.
No fim, sobra a questão: porque não se encontra num filme sobre sonhos um único momento onírico e evocativo do que é realmente sonhar?
6. Batman - O Início (2005)
Christopher Nolan e David S. Goyer desenvolveram um reboot do Homem-Morcego e voltaram a contar as origens de Batman. A visão de Nolan é a de um justiceiro numa Gotham verosímil e realista, num universo mais próximo do nosso do que do fantástico da BD. O tom é sério e grave e Batman - O Início é um filme não linear que enraíza as decisões de Bruce Wayne, interpretado por Christian Bale, como sequência de uma exploração da sua alma e do seu destino. As suas capacidades físicas são justificadas pelo treino recebido por uma personagem misteriosa no oriente, Rha's al Ghul, interpretado por Liam Neeson, e a capacidade financeira e tecnológica dos seus gadgets enquadrada numa divisão da sua própria empresa liderada pelo aliado Lucius Fox, o sempre fiável Morgan Freeman.
Sofrendo dos males de um filme que tem de contar a origem do super-herói é, no entanto, uma obra de uma consistência e qualidade imbatível e, se não mudou o mundo quando estreou é um filme que melhora com repetidas visualizações e foi a base sólida para o mega-sucesso que lhe seguiria, abrindo a porta para a aceitação do público dos super-herois da Marvel, e, ironicamente, semeando o negrume que constrangiu as adaptações da DC Comics desde então.
7. Insónia (2002)
Na onda do sucesso de Memento (2000), Christopher Nolan deu início a uma proveitosa relação com a Warner Bros., o gigante da indústria cinematográfica norte-americana que distribuiu este projecto algo atípico na carreira do realizador, olhando em retrospectiva. Insónia é um remake de um filme norueguês de 1997 com o mesmo nome, e a única ocasião em que o realizador não esteve envolvido no guião — da responsabilidade de Hillary Seitz. No entanto, Nolan fez deste “projecto de encomenda” um thriller policial “às claras”, ponderado e atmosférico, uma espécie de anti-noir onde o negrume se esconde à vista da luz do sol, domando Al Pacino e oferecendo a Robin Williams a oportunidade de sacudir a fama de comediante em mais um confronto entre polícia e criminoso em que o bem e o mal servem como dois lados da mesma moeda.
Insónia é um filme competente e envolvente, com excelentes interpretações tanto do par de protagonistas como do forte elenco secundário. Também exibiu os talentos do director de fotografia Wally Pfister, fiel colaborador que seria instrumental em alguns dos títulos mais marcantes de Nolan. Apesar de todos os seus pontos fortes, em última instância, Insónia não transcende os limites do seu género nem revela o ADN (para o bem e para o mal) do seu distinto autor.
8. Following (1998)
Realizado aos fins-de-semana durante um ano, com um elenco amador e praticamente sem orçamento que não o custo da película de 16 mm pago do bolso do próprio Christopher Nolan, Following é um thriller neo-noir a preto-e-branco que revelou imediatamente o potencial do seu autor, bem como algumas das suas características temáticas e o estilo que o viria a definir em produções de maior orçamento. Através de uma estrutura não linear, Nolan brinca com a percepção do tempo num jogo de enganos que nunca revela totalmente a mão no que respeita às motivações das personagens, num ciclo aparentemente interminável de traições e manipulações.
Apesar de conciso e eficiente, a natureza amadora do elenco, a trabalhar em casas de família e amigos, e da fotografia amiúde com luz ambiente em 16 mm a preto-e-branco, fazem com que Following não escape da sua origem de baixo-orçamento e do estatuto de curiosidade de uma obra prematura a prometer voos mais altos.
9. O Cavaleiro das Trevas Renasce (2012)
Depois do sucesso de O Cavaleiro das Trevas (2008), e da morte do carismático Joker Heath Ledger, peça central no sucesso daquele filme, como concluir o prometido tríptico dedicado ao vigilante Homem-Morcego? Mais uma vez, a ambição narrativa — o guião foi novamente da responsabilidade dos irmãos Nolan, colaborando na história com David S. Goyer — minou o impacto daquele que é, à primeira vista, um eficaz filme de acção. Com uma trama labiríntica sobrecarregada de personagens, O Cavaleiro das Trevas Renasce é bombástico onde os filmes anteriores tinham sido ponderados e, apesar de negado por Christopher Nolan, parecia comentar a situação sócio-económica do momento — vivia-se na altura a luta contra a desigualdade económica e o movimento Occupy Wall Street —, ao ponto de ser usado como arma de arremesso dos dois lados da barricada política.
Polémicas fora da tela à parte, O Cavaleiro das Trevas Renasce é a conclusão desengonçada para uma saga que até ali elegante, tentando ser duas coisas diferentes ao mesmo tempo: a conclusão da trilogia, recuperando elementos narrativos do primeiro filme, e a pedra de lançamento para possíveis sequelas, numa espécie de passagem do testemunho. Tudo isto embrulhado numa história de contornos terroristas que coloca Gotham City na anarquia e distrai-se do conflito interno do herói, o verdadeiro ponto de interesse do Batman, versão Nolan, que nunca devia ter deixado de ser o foco central.
10. Interstellar (2014)
Interstellar, o argumento que o irmão Jonathan Nolan andava a desenvolver para Steven Spielberg, invocava para si mesmo a memória (e pesada herança) de 2001: Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, e prometia uma narrativa cumpridora das leis da física, devidamente apimentada com algumas liberdades criativas, sempre baseadas em ciência. Este seria o filme de hard sci-fi — ou seja, ficção científica enraizada na precisão científica — de Christopher Nolan, mas acabou por se revelar também como a sua tentativa de corrigir em excesso a omissão da sua filmografia anterior: a emoção e o sentimento. Ao introduzir rapidamente elementos de mistério e suposta intervenção sobrenatural, Interstellar cedo revela a mão do seu autor. Estamos novamente perante um quebra cabeças para ser resolvido no final. Mas o problema é que tudo parece forçado e fabricado, colocando-nos imediatamente de sobreaviso e negando qualquer possibilidade de deslumbramento na hora das revelações. Os irmãos Nolan constroem uma narrativa trapalhona que vive ou morre em função do sucesso em enquadrar o espectador da premissa da sua história e em o educar no que respeita às suas regras.
Ainda assim há coisas boas em Interstellar, estando aqui talvez a melhor colaboração entre o realizador e o compositor Hans Zimmer. É um filme épico e ambicioso e, apesar do resultado final, estas são qualidades a que todos os autores devem apontar. Apesar de não ser subtil, tem subjacente alguns conceitos que mereciam a pena ser explorados, tais como a falibilidade do Homem; o amor como elemento tangível, constante no espaço e no tempo, e a chave para a nossa salvação; e a sugestão que esta depende, apenas e só, de nós próprios. Visualmente deslumbrante, com imagens espaciais de rara beleza, não lhe tinha ficado mal menos conversa e mais alguma contemplação. É caso para dizer que quanto maior o voo, maior a queda.