Tenet
Desde O Cavaleiro das Trevas, a estreia de um novo filme de Christopher Nolan é um acontecimento. O realizador britânico aproveitou da melhor forma a liberdade proporcionada pelo sucesso estrondoso daquela adaptação de uma propriedade intelectual com origem na banda desenhada para financiar os seus projectos originais - e aqui há que se lhe tirar o chapéu. Inception - A Origem provou que os blockbusters de sucesso provenientes de Hollywood não têm de ser totalmente desprovidos de cérebro nem limitar-se a sequelas ou recuperações de material com provas dadas no passado. No entanto, parece também ter aberto caminho para um cinema cada vez mais complexo, intrincado e bombástico, em que cada novo filme tem de obrigatoriamente conter um conceito deslumbrante, ou no mínimo mais inteligente do que a mais fantástica imaginação da sua audiência. Repetidas vezes - talvez apenas com a excepção de Dunquerque - à custa de coerência narrativa e caracterização de personagens.
A juntar a esta tendência, Tenet, o mais recente filme do realizador, acumulou o peso da responsabilidade de se apresentar como o título que manteria viva a chama do cinema após o período surreal que vivemos em 2020, quando começamos a sonhar com um retorno à normalidade. Porque Christopher Nolan, que voltou a rodar em 70 mm IMAX, insistiu que o seu filme era para ser visto numa sala de cinema, de preferência no maior ecrã possível. Não só pelo purismo e amor ao meio, mas porque os seus filmes necessitam desesperadamente deste elemento grandioso, desta vertente de espectáculo. Com estreia inicialmente prevista para Julho, foi adiado sucessivas vezes, e estreia finalmente em Portugal a 26 de Agosto.
Tenet junta John David Washington e Robert Pattinson numa história de intriga e espionagem internacional em que o futuro da humanidade pode estar em perigo por via da tecnologia de manipulação temporal na posse de um empresário multimilionário russo, interpretado por Kenneth Branagh. Elizabeth Debicki é a mulher que procura fugir das garras do empresário, impedida de o fazer para não perder o filho.
Esta singela sinopse, em que tento evitar spoilers, revelando o mínimo aceitável para transmitir um semblante de compreensão da trama, é sintomática do primeiro grande problema de Tenet: a ausência de verdadeira caracterização de personagens. No limite, e sendo generoso, estas são cifras - o nome da personagem de John David Washington nunca é mencionado, sendo apenas conhecido como "O Protagonista" - ecoando a metáfora cineasta encerrada no título da filmografia de Nolan com o qual talvez este partilhe mais afinidades Inception - A Origem. No pior dos cenários, as personagens são caricaturas, como é o caso do vilão inacreditavelmente histriónico ide Kenneth Branagh - e quem, no seu perfeito juízo, depois de Jack Ryan: Agente Sombra, decidiu permitir a Branagh interpretar novo vilão de sotaque russo? Quem mais se aproxima de uma caracterização redonda é Elizabeth Debicki, ainda assim a mãos com o drama batido e rebatido de não querer perder o filho.
Não fugindo ao padrão dos seus títulos anteriores, desta vez, Nolan enredou-se ainda mais no conceito no centro da trama com uma narrativa hiper-complexa à qual faltam os momentos de deslumbramento que anteriormente disfarçavam a mecanização do seu cinema. Os diálogos voltam a servir apenas a função de exposição, com várias cenas a servirem como momentos de revisão da matéria dada. Um dos melhores exemplos, é o momento em que "O Protagonista" aprende as características de disrupção temporal em que Nolan aposta toda a sua narrativa: perante as possíveis questões da personagem e da audiência, é-lhe dito para que não tente compreender o que lhe está a ser explicado, limitando-se a senti-lo, um dos primeiros momentos de humor involuntário do filme. Tomando novamente Inception - A Origem como referência, ultrapassadas as cenas de estabelecimento de regras, o conceito aí explorado era parte integrante da mecânica da narrativa, arrebatando e empolgando no momento da acção. E Tenet tem a sua boa dose de impressionantes e ambiciosas cenas de acção. Infelizmente, o conceito temporal no seu cerne funciona apenas como um truque de ilusionismo que, sem uma narrativa ágil e envolvente, perde o impacto e o elemento surpresa a que o autor almejou - vejam-se, também, as tentativas de ligação emocional na recta final, vergadas pelo peso e pelo cansaço do que as precedeu.
Tenet voltou a contar com o director de fotografia e colaborador recente Hoyte Van Hoytema, mas marca, curiosamente também desde O Cavaleiro das Trevas, a primeira vez que Hans Zimmer não colabora na composição da música de um filme de Christopher Nolan, tendo esta ficado a cargo de Ludwig Göransson, compositor sueco vencedor de um Óscar por Black Panther e autor da fantástica banda sonora da série televisiva The Mandalorian. Infelizmente, Göransson limita-se a reproduzir o estilo percussivo e estrondoso que Zimmer aperfeiçoou e popularizou há dez anos. Esta insistência em fórmulas testadas e comprovadas resumem, de certa forma Tenet, e este pode ser encarado como uma boa prova-dos-nove. Os apreciadores incondicionais da obra de Nolan encontrarão aqui por certo virtudes e terão uma experiência familiar e recompensadora. Quem lhe torcia o nariz, continuará a encontrar aqui todos os vícios e não será desta que se renderão ao seu cinema.