A Mulher à Janela
A Mulher à Janela é uma das mais recentes vítimas da pandemia, estreando na Netflix sem passar pelas salas de cinema. O último título da Fox 2000 antes da dissolução na sequência da absorção da Fox pelo gigante Disney marca o regresso de Joe Wright atrás das câmaras depois do sucesso em 2017 de A Hora Mais Negra e a estreia de Tracy Letts na adaptação de material escrito por terceiros, neste caso o romance homónimo de A. J. Finn, pseudónimo para o controverso autor americano Daniel Mallory. Com uma vida recheada de mentiras e dissimulações de forma a impulsionar a carreira, Mallory reflete a sua postura pessoal no primeiro romance ao “pedir emprestado” de forma descarada para a sua narrativa elementos de vários filmes, desde o discreto thriller de 1995 com Sigourney Weaver Cópia Mortal até ao clássico incontornável de Alfred Hitchcock de 1954 Janela Indiscreta.
Amy Adams é Anna Fox, uma mulher reclusa numa enorme casa em Nova Iorque que sofre da agorafobia. Separada da família, com quem comunica diariamente por telefone, é acompanhada por um psiquiatra, encarnado por Tracy Letts. Ocasionalmente, é ajudada por David, o inquilino da cave interpretado por Wyatt Russell, que lhe leva o lixo. Para passar o tempo, Anna espia os vizinhos. Entre eles, encontram-se os Russell, uma família recém-chegada ao bairro que se instala na casa em frente. O jovem Fred Hechinger interpreta Ethan, o filho reservado, enquanto que os conhecidos Gary Oldman e Julianne Moore encarnam os pais, o controlador Alistair e a amigável Jane. Numa noite em que misturou álcool com a medicação, Anna olha pela janela e testemunha Jane a ser esfaqueada, chamando imediatamente a polícia. Os Russell negam a ocorrência de qualquer ataque, e a polícia, incluindo o compreensivo detective Little, num papel de Brian Tyree Henry, também não acredita na história de Anna, já que outra mulher, na figura de Jennifer Jason Leigh, apresenta-se e afirma ser Jane, viva e ilesa. Anna insiste que aquela mulher não é a mesma que conheceu anteriormente, mas o seu equilíbrio mental é colocado em causa quando reconcilia o seu próprio passado.
Assumindo as suas inspirações, A Mulher à Janela apresenta logo muito cedo o seu alibi ao exibir uma cena de Janela Indiscreta, a primeira de muitas cenas de variados filmes que veremos exibidos na televisão que constantemente faz companhia a Anna. Amy Adams, sempre fiável, tem aqui um papel central que abdica da vaidade em função do retrato de uma mulher a braços com um problema mental que a impede de funcionar no exterior da sua casa. Este dispositivo narrativo enclausura-nos com Anna num antigo casarão nova iorquino de vários andares, de onde não sairemos durante a grande maioria da narrativa, que é reminiscente de mais um thriller, desta vez realizado em 2002 por David Fincher, Sala de Pânico. Por muito que se tente evitar, é impossível ignorar a falta de originalidade da premissa e do cenário aqui apresentado. E qualquer abordagem generosa a este filme tem de aceitar isso mesmo, sobrando então a eficácia da execução. O virtuosismo de Joe Wright, auxiliado pelo desenho de produção de Kevin Thompson e pela fotografia de Bruno Delbonnel, definem um ambiente ao mesmo tempo soturno e saturado de cores. A fotografia e a composição são excelentes, e A Mulher à Janela capta visualmente a nossa total atenção.
Infelizmente, a narrativa deixa muito a desejar. Não li o romance original, por isso não tenho forma de saber se o trabalho de Tracy Letts é bem sucedido ou não do ponto de vista da adaptação. Limitando-me ao filme, a tentativa de construção do mistério é nitidamente um tiro ao lado. É superficial e pouco envolvente, desembocando numa revelação final digna dos melhores episódios do Scooby-Doo, com o crédito emocional angariado até ao momento esvaziado por um confronto final digno do mais banal filme terror e suspense. Foi reportado que, depois de exibições de teste preliminares em 2019, os espectadores tinham achado o filme confuso, o que terá levado a filmagens adicionais pelo salvador de filmes profissional Tony Gilroy. Não faço ideia do que terá mudado entre a versão inicial e a que nos chegou, nem tampouco se os problemas vinham do guião ou se foram introduzido pela interferência dos produtores, mas parece-me que o maior defeito de A Mulher à Janela está numa estrutura narrativa muito preocupada com a caracterização da protagonista, o que só por si é positivo, no entanto esta é conseguida em detrimento da construção de um quebra-cabeças que faça sentido, com o argumento a esforçar-se para justificar o aparecimento das desaproveitadas personagens secundárias em casa da Anna em benefício do desenvolvimento da frágil trama. Não obstante a constante companhia de Amy Adams, é uma pena as perfunctórias participações de consagrados actores como Anthony Mackie, Gary Oldman, Jennifer Jason Leigh ou Julianne Moore. Também não ajuda a anónima contribuição musical de Danny Elfman, um nome que em tempos provocava expectativa, mas que hoje em dia parece esgotado da maníaca criatividade de outrora.
Não creio que A Mulher à Janela faça Alfred Hitchcock dar voltas na campa, mas certamente não está à altura do estatuto que o próprio faz questão de invocar.
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