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Licorice Pizza

Licorice Pizza

Se há sinais do impacto da pandemia no panorama cinematográfico actual, um dos mais evidentes é a carreira relativamente discreta de Licorice Pizza nas salas de cinema portuguesas. Paul Thomas Anderson é, discutivelmente, um dos nomes maiores do cinema norte-americano do último quarto de século, e a estreia de um novo filme com a sua assinatura deveria ser um acontecimento devidamente celebrado. Desde o sucesso dos filmes mosaico Boogie Nights - Jogos de Prazer e Magnólia, Anderson tem-se revelado um autor eclético com uma grande amplitude de registos. Desde a comédia romântica, tanto de pendor musical — como é o caso de Embriagado de Amor, como revelando um humor mais negro, como acontece em Linha Fantasma — até aos épicos sobre aquele grande mito que dá pelo nome de sonho americano — casos de Haverá Sangue e O Mentor. Com Vício Intrínseco, fez das paranóias do escritor Tomas Pynchon suas, e, com o lançamento recente de Licorice Pizza, desenhou o segundo tomo de uma trilogia temática dedicada aos anos setenta da sua infância que teve início com Boogie Nights. Se há uma linha fantasma temática transversal na sua obra, além da reflexão cínica sobre o seu próprio país, é uma exploração sobre a intangibilidade das relações inter-pessoais. Anderson povoa os seus filmes de personagens alienadas, famílias disfuncionais, sonhos desfeitos e reflexões nem sempre românticas sobre o passado. Contrariando estas visões pouco românticas, Licorice Pizza aparece como um olhar nostálgico sobre a Califórnia da década de 1970 tão cara a Paul Thomas Anderson.

1973. San Fernando Valley. Gary Valentine é um adolescente de 15 anos na fila para tirar uma fotografia escolar. Empreendedor muito além do que é tradicional num adolescente da sua idade, Gary é actor com participações ocasionais em filmes e programas televisivos, além de ter uma empresa de relações públicas com a mãe. Ao reparar na assistente do fotógrafo, Alana Kane, Gary convida-a para um encontro apesar da diferença de idades entre os dois, visto que Alana é dez anos mais velha do que Gary. Apesar da recusa inicial, Alana concorda em sair com Gary, dando assim início a uma relação de amizade improvável. Por entre vários episódios que envolvem a criação de uma empresa de venda de colchões de água, encontros com personagens da indústria do espectáculo e envolvimento com um político local, Gary confronta-se com o constante desejo por Alana, enquanto que esta questiona a sua atracção pelo adolescente.

Licorice Pizza tem sido recebido com algumas críticas a propósito da salubridade da relação entre Alana e Gary, bem como de um retrato de uma personagem intrinsecamente racista. Em relação a esta última acusação, Paul Thomas Anderson defendeu-se adiantando que traçou um retrato contemporâneo e em linha com comportamentos da era recriada. Ou seja, reforçando o óbvio, só porque uma personagem num filme é racista, não quer dizer que o filme ou o seu autor o sejam. Em relação à diferença de idades dos protagonistas, resta adiantar que caberá a cada espectador reagir de acordo com as suas próprias convicções, de preferencia julgando o filme apenas depois de o ver. Cinema é arte, e na arte também tem lugar a exploração de temas provocadores e questionáveis. Tudo dependerá da sensibilidade do autor e da forma como tais temas são expostos.

Este é um filme menos expansivo que Boogie Nights, e, a par de Vício Intrínseco, será um dos mais soltos e episódicos do realizador. Paul Thomas Anderson partiu de uma ideia base e enriqueceu-a com histórias do actor e produtor Gary Goetzman. Tal como o seu homónimo na vida real montou um negócio de venda de colchões de água, além de ter aberto um salão de jogos, também Gary assim o faz no filme. Tal como Goetzman participou num filme com Lucille Ball, também Valentine participa no decorrer da narrativa num filme com uma atriz veterana baseada em Ball. Aliás, Licoricce Pizza oferece um sortido de situações e personagens baseadas na realidade, com algumas delas a inspirarem personagens fictícias — casos de Jack Holden, um actor baseado em William Holden interpretado por Sean Penn, ou Rex Blau, Tom Waits como uma versão do realizador Mark Robson, ambos protagonistas de uma extravagante cena que reflecte os egos maiores do que a vida alimentados pela indústria do cinema em Los Angeles — e outras a serem representadas com os nomes próprios — como acontece com a destravada prestação de Bradley Cooper, a encarnar o infame cabeleireiro namorado de Barbara Streisand tornado produtor de Hollywood Jon Peters, protagonista aqui de alguns momentos de divertida tensão, ou então Benny Safdie como Joel Wachs, um político candidato à câmara municipal de Los Angeles com um segredo privado que faz questão de assim o manter.

Logo na cena de abertura, Licoricce Pizza transporta-nos para uma outra era e atrai-nos para o círculo do carismático Gary, uma estreia notável de Cooper Hoffman. Torna-se inevitável apontar os laços familiares que o trazem a este filme. Cooper é filho do desaparecido Philip Seymour Hoffman, colaborador frequente de Paul Thomas Anderson. Quando digo que Gary é carismático, não é do ponto de vista de uma típica estrela de Hollywood, mas sim porque se apresenta como um adolescente verosímil, apesar da sua postura perante a vida não corresponder às ambições tradicionais dos adolescentes, tanto em frente às câmaras como fora delas. Gary é auto-confiante, decidido e empreendedor, no entanto é um rapaz anafado, de borbulhas na cara e dentes desalinhados. Nem imaginam o quão refrescante é vermos na tela pessoas que parecem e soam verdadeiras. O mesmo se aplica a Alana, interpretada pela homónima Alana Haim. A sua presença é cativante, apesar da sua beleza longe dos padrões tradicionais que a cultura popular nos tenta impor. E sim, Alana Haim é um terço do grupo feminino Haim. Também aqui o elemento familiar marca presença, visto que as irmãs e os pais de Alana entram no filme imitando a vida real como o núcleo familiar de Alana. A relação de Anderson com a banda é longa, tendo sido aluno da mãe das raparigas e tendo dirigido alguns dos seus telediscos. Como curiosidade, também podemos observar Maya Rudolph, consagrada comediante e companheira do realizador, num pequeno cameo, bem como os filhos de ambos, polvilhados por várias cenas ao longo do filme.

Voltando ao par protagonista, é nos seus ombros que assenta grande parte do sucesso deste filme que nos convida a deambular pelo evoluir da relação entre os dois, com Hollywood dos anos setenta como pano de fundo. Neste aspecto, talvez seja este o filme menos cínico de Paul Thomas Anderson, nitidamente apaixonado pela época e pelos suas personagens. A nostalgia é patente nas pequenas grandes diferenças da vivência e da experiência adolescente. Numa era sem telemóveis, a presença física tomava uma importância crucial. Um telefonema encurtava a distância, mas ainda assim tinha de saltar a barreira da família, dado que havia um telefone por lar. Excelente a cena em que Gary, incapaz de falar depois de ligar a Alana, se vê confrontado com a chamada de volta, partilhando os dois um silêncio tão cúmplice como desconfortável. Estes pequenos episódios, aliados à distância física, ofereciam uma desaparecida urgência na comunicação e no contacto, urgência esta reflectida aqui em inúmeras cenas em que Gary e Alana correm, tanto lado a lado como um direcção um do outro, à busca de algo que no momento parece elusivo. Mais que um romance, Licoricce Pizza será um filme sobre a transição para a idade adulta. Gary é precoce e quer crescer depressa demais, enquanto que Alana encontra-se irremediavelmente ancorada na sua adolescência, talvez assoberbada pela responsabilidade de crescer.

Paul Thomas Anderson sempre revelou uma extraordinária sensibilidade para o ambiente sonoro dos seus filmes, e aqui não é excepção. A banda sonora está recheada de músicas essenciais para a atmosfera do filme, desde escolhas mais óbvias como David Bowie, que já ilustrava os trailers com o clássico Life on Mars?, Sonny & Cher ou The Doors até seleções mais inesperadas como músicas de Nina Simone ou Bing Crosby & The Andrews Sisters. No entanto, a jóia da coroa, pela ilustração perfeita de um momento memorável e crucial, é Let Me Roll It, composição de Paul McCartney & Wings. Alana e Gary estão deitados num colchão de água, com o enquadramento a sugerir um daqueles momentos em que o resto do universo deixa de existir, como se tivessem sido transportados para outra realidade, com a letra da música a ecoar na perfeição o conflito entre o desejo de Gary e a sua impossibilidade.



“I want to tell you

And now's the time

I want to tell you that you're going to be mine

I can't tell you how I feel

My heart is like a wheel

Let me roll it

Let me roll it to you.”


A importância da música terá também influenciado o título do filme. Licorice Pizza, em tradução literal “piza de alcaçuz”, foi uma popular cadeia de lojas de discos no Sul da Califórnia entre os anos de 1969 e 1986, sendo que o vinil fazia lembrar esse doce escuro, sendo a forma a mesma de uma piza. Entitulado provisoriamente de Soggy Bottom — garanto que quem viu perceberá porquê —, o filme viria a tomar o nome da cadeia de lojas precisamente por questões nostálgicas. Anderson terá afirmado que não só o título o “remete imediatamente para a infância“ como seria “capaz de captar o sentimento do filme e ilustrar a sua vibração”. Entretanto, se o contributo habitual de Johnny Greenwood é aqui reduzido para dar lugar às seleções musicais, quando finalmente se faz notar, com o tema-título, funciona como um anzol que nos apanhou irremediavelmente, bastando ao realizador enrolar a linha calmamente para nos ter na mão.

Licorice Pizza pode parecer um filme mais descontraído na filmografia de Paul Thomas Anderson, mas isso não o torna menos relevante. É um filme muito pessoal, tingido a nostalgia, que nos oferece a possibilidade de habitar por umas horas uma realidade que já lá vai na companhia de personagens fascinantes à procura da sua alma-gémea e a lidar, cada uma à sua maneira, com a entrada na idade adulta. Apesar da estrutura episódica, potencialmente alienadora para alguns espectadores, é um filme que entranha e continua a ressoar muito tempo depois da visualização — o que, na minha experiência pessoal, constitui um verdadeiro milagre hoje em dia. Em suma, é uma obra maior de Paul Thomas Anderson e um dos melhores filmes de 2021 que vi.

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