Episódio #6 - Cavaleiro de Copas / Cop Car / Como Enterrar a Ex
Quando vi A Barreira Invisível (The Thin Red Line) não sabia ao que ía. Aqui estava uma linguagem cinematográfica completamente nova e original para mim. Um filme que dispensava a narrativa tradicional para dar lugar a um poema visual e sonoro que parecia pertencer a um tempo e lugar próprios e que fluía ao sabor tanto das reflexões e monólogos interiores das personagens como da contemplação da própria natureza - da que nos rodeia e da que nos define.
Tornou-se obrigatório descobrir Terrence Malick. Independentemente dos anos que permeiam os seus filmes, aqui está um cineasta com uma carreira consistente, temática e estilisticamente. Noivos Sangrentos (Badlands), Dias do Paraíso (Days of Heaven), O Novo Mundo (The New World) e A Essência do Amor (To The Wonder) compõem uma filmografia desafiante mas altamente recompensadora que, até agora, ficava completa com a obra-prima A Árvore da Vida (The Tree of Life), o culminar perfeito de um estilo inimitável. Obra ambiciosa que explora o micro e o macro-cosmos, a espiritualidade, a imponderabilidade da natureza, a educação, o amor maternal, a rigidez parental, a contradição dos sentimentos fraternais. Tudo isto e muito mais numa combinação perfeita de som e imagem que levará quem se deixar embalar no seu encanto a uma viagem de descoberta interior capaz de mudar uma vida.
Com Cavaleiro de Copas Terrence Malick prossegue a sua demanda espiritual em forma de filme. Desengane-se quem vem ao engano: o excelente trailer e os créditos que colocam Christian Bale, Cate Blanchett e Natalie Portman em destaque no poster por cima do título fazem o trabalho possível na tentativa de empacotar e vender o que não é facilmente vendável. Christian Bale está de facto no centro da acção e as restantes personagens gravitam à sua volta. Acontece que Blanchett e Portman são os nomes mais sonantes do resto do elenco.
Um filme de Terrence Malick é uma experiência indescritível para quem nela não embarca. É um cinema dos sentidos. Não oferece respostas mas sim questões e reflexões sobre as angústias da existência. O proverbial sentido da vida é alvo de uma exploração fragmentada e embalatória. Qualquer tentativa de sinopse é insuficiente para veicular a forma, os sons ou as imagens que formam um mosaico contemplativo e, consistentemente, uma obra de uma espantosa coerência temática e formal. Experimentem pesquisar na secção de fotos do Google as palavras “tree”, “of”, “life” e “Malick”: qualquer uma das primeiras vinte ou trinta imagens devolvidas poderia ser emoldurada e colocada num museu.
Tenho de rever A Essência do Amor mas senti o Cavaleiro de Copas como um companheiro espiritual d’A Árvore da Vida. Retoma os temas das relações fraternais, da angústia da perda, da procura de sentido e do arrependimento. Enquanto que na Árvore da Vida assistimos à perda da inocência e respectivas dores de crescimento, em Cavaleiro de Copas seguimos Rick, um argumentista de sucesso em Hollywood, mas perdido num deserto existencial não sabendo quem é, para onde vai, ou o que vale. O hedonismo do meio por onde se movimenta não substituindo a procura de algo mais substancial e verdadeiro.
A que damos valor? Onde colocamos o nosso amor? O que nos reserva o futuro? Quais os ensinamentos do passado? Qual a luz da nossa vida? O que nos move? E o que nos atormenta? Como encontrar o caminho que nos levará das trevas para a iluminação redentora?
Estruturalmente dividido em secções que correspondem a diferentes cartas do tarô, Cavaleiro de Copas tem uma natureza mais episódica mas mantém a forma “Malickiana” habitual onde os momentos são colecções de fragmentos e sensações e onde o tempo é uma variável desconhecida e o passado, o presente e o futuro se fundem numa corrente de consciência existencialista.
Malick é um humanista. Como tal tem consciência do nosso ínfimo lugar na grande escala do universo, patente nas cenas iniciais onde a Terra é observada do exterior em cenas de rara beleza. Em última instância é também um optimista. Em Cavaleiro de Copas o acto de criar vida é encarado como caminho derradeiro para uma centelha de esperança na incessante busca pelo sublime.
Como por vezes acontece até os melhores planos podem ir por água abaixo. Aconteceu este ano com o festival de cinema MOTELx que decorreu em Lisboa. Tendo consultado o programa antecipadamente tinha assinalado os filmes que alinhavam a minha vontade de os ver com a minha disponibilidade para o fazer. Apontei a mira a quatro filmes. Saldo final: vi zero dos quatro.
Um em particular deixou-me desapontado. Adoraria ter visto Lost Soul: The Doomed Journey of Richard Stanley's Island of Dr. Moreau. Se alguém souber como posso ver este filme deixe-me a dica por email ou mensagem de Facebook e terei muito gosto em falar aqui dele. Fascinam-me as histórias por detrás das histórias no processo criativo cinéfilo e, ainda mais, quando estas se focam em projectos falhados. Green Room, com alguma sorte estreará nas salas portuguesas. Os restantes dois tive a oportunidade de ver recentemente: Cop Car e Como Enterrar a Ex.
Cop Car, de Jon Watts, é o equivalente em filme a uma demo de uma banda lançada como lado B de um single. Há um conceito interessante e uma abordagem em bruto mas o resultado final ainda não está polido nem foi desenvolvido o suficiente. Partindo de uma premissa what-if? - e se dois miúdos encontrassem e roubassem um carro da polícia? - poderia muito bem ser o exercício num qualquer curso de escrita criativa. O resultado é um filme minimalista com meia-dúzia de personagens e um tempo fílmico perto do tempo real que mantém a ilusão de verosimilhança até ao momento em que as obrigações da narrativa têm de entrar em acção.
Cop Car é um veículo, trocadilho não intencional, para o seu actor principal, Kevin Bacon, que também é um dos produtores executivos. É um daqueles papéis sumarentos para um actor pois é politicamente incorrecto. O Sheriff Kretzer é uma personagem amoral e nitidamente envolvido em negócios obscuros, apesar de ostentar um crachá. Somos apanhados no meio da acção e gosto do facto de não conhecermos detalhes nem motivações. Um dos males mais comuns são os argumentos escritos em demasia, onde tudo tem de ser justificado e correlacionado. Aqui isto não acontece mas apesar disso faltam-lhe ideias para levar a premissa a bom porto. Confesso que, dado o ponto de partida, esperava um final mais chocante e, apesar do desfecho ser inevitavelmente violento, há uma inesperada contenção nos acontecimentos que faz com que o resultado final saiba a pouco.
Joe Dante é um herói para quem gosta de cinema fantástico e cresceu nos anos 80. Bom, para mim, pelo menos. Desde os filmes de terror de baixo orçamento Piranha e O Uivo da Fera, passando pelo Gremlins (e respectiva sequela) ou as aventuras fantásticas Os Exploradores ou o Micro-Herói, era inevitável descobrirmos o nome de Dante em filmes irreverentes, com uma alegria e humores contagiantes. Produto da escola do Roger Corman onde iniciou a carreira a fazer a edição dos trailers para o rei da série B, Joe Dante nunca se firmou na constelação dos mais brilhantes de Hollywood. Nos últimos 13 anos realizou apenas dois filmes, entre projectos para TV: Medos, de 2009 e Como Enterrar a Ex, de 2014. Não vi o primeiro mas Como Enterrar a Ex é um filme de terror cómico com um conceito pouco original num mundo que conhece o Shaun of the Dead há já 11 anos: Max tenta superar a morte da namorada, Evelyn, iniciando uma relação com Olivia, mas Evelyn volta dos mortos para cumprir a promessa que estariam juntos para sempre. Se isto parece familiar é porque também fará lembrar Sangue Quente de 2013 ou Beth, A Zombie de 2014.
As sensibilidades de Joe Dante são as ideais para abordar o material: Max e Olivia partilham o gosto pelo terror, o fantástico e o macabro e Como Enterrar a Ex funciona como uma homenagem às suas diversas formas de expressão cultural. Max quer abrir uma loja de memorabilia de Halloween, à falta de melhor designação, Olivia gere um negócio de gelados com nomes que fazem referências obscuras a cereais descontinuados e ambos assistem a sessões de cinema à meia-noite ou exibições d'A Noite dos Mortos Vivos num cemitério local. O único entrave é, então, Evelyn, uma activista ecologista que, não só é muito insistente, como acontece já estar morta. Algum humor ocasional não é suficiente para colmatar o óbvio: Como Enterrar a Ex não é nem engraçado, nem assustador o suficiente, o que faz com que o resultado seja algo genérico e menor, ainda para mais vindo de Joe Dante.
Apesar disso o saldo desta dupla-sessão é positivo pois Jon Watts mostra promessa e prefiro um mundo com um Dante menor do que um mundo sem Dante nenhum.