Ao longo do mês de Dezembro partilharei os meus filmes favoritos que vi em 2015. Esta lista não terá nenhuma ordem em especial e não pretende ser completa nem definitiva. Não vi, nem de longe nem de perto, todos os filmes do ano. Este é um texto editado e revisto do original escrito a 31/10/2015 para o episódio 3 do podcast Segundo Take.
As Mil E Uma Noites (Vol. 1 - O Inquieto, Vol. 2 - O Desolado, Vol. 3 - O Encantado), 2015, dir. Miguel Gomes
Em As Mil E Uma Noites, de Miguel Gomes, estamos a milhas das visões pitorescas e condescendentes de telenovelas e outras ficções televisivas que brindam quem diariamente opta por ligar o terrível aparelho em suas casas. Tão pouco é a sua visão a de um historiador ou de mero documentarista. Através de uma mistura única de documentário e ficção Miguel Gomes dá voz a personagens reais e fictícias e usa os seus filmes como meio para se exprimirem contando histórias reais, não por assim terem acontecido mas por serem verdadeiras. E que país vemos reflectido nos seus filmes?
As Mil e Uma Noites propõe-se a retratar histórias decorridas durante um ano do país em crise sob o jugo da troika. O seu enquadramento é a estrutura narrativa d'As Mil e Uma Noites com Xerazade a contar histórias para apaziguar o seu marido, o violento Rei Shariar. Tal como proferido pela própria no Volume 3, O Encantado, parafraseando, "As histórias nascem dos desejos e dos medos dos homens. Servem para para nos ajudar a sobreviver e para ligar o tempo dos mortos ao tempo dos que hão-de viver." Esta passagem, bem como a dedicatória à filha de 8 anos no fim deste mesmo volume, é uma declaração de intenções porque As Mil e Uma Noites oferece uma reflexão através de histórias que reflectem o estado de espírito, as ansiedades, os sonhos (ou falta deles) do nosso país.
Desta forma o filme é um caleidoscópio de observação, sátira, reflexão, comédia, drama, documentário, ficção e fantasia que, se no primeiro volume traz alguma leveza, no segundo volume carrega uma melancolia tão lusitana na sátira em jeito de tragédia grega que tem como peça central um julgamento simbólico de todo o povo português. É um olhar crítico, também, o de Miguel Gomes, não se limitando a condescender com o povo mas virando a câmara também para os seus defeitos e fraquezas.
O terceiro volume apresenta paralelismos entre o tema do filme e o acto de o contar e de contar histórias em geral. Debruça-se sobre um hobbie do qual nada conhecia, o mundo fascinante de passarinheiros de bairros da periferia de Lisboa e dos seus concursos de cantoria de tentilhões. As suas histórias estão intimamente ligadas a estes bairros de habitação social de Lisboa. São histórias que normalmente ficam à margem das visões idealizadas e turísticas da cidade e, parafraseando desta vez o realizador no Volume 1, "há aqui uma qualquer analogia a fazer mas sou muito burro para saber qual é!"